VIDA VIVIDA/ VIDA PENSADA DE RAIMUNDO DE FARIAS BRITO, MEDITABUNDO ORIGINAL

Leitor amigo, a seguir

Tudo que se encontra escrito

Versa sobre o mais ilustre

Filho de São Benedito

O filósofo famoso

De pensar industrioso

Chamado Farias Brito.

Em 1, 8, meia, 2

Mês de julho, 24

Nasce na Ibiapaba

Pra sofrer o diabo a quatro

O assinalado Raimundo

Que investigará a fundo

Do Mundo o Grande Teatro.

Parece desde pequeno

Condenado estava o dito

A muita agrura passar

Cumprindo seu veredi’to

Como se nascido para

Da vida apanhar na cara

Do destino levar pito.

Seu pai foi Seu Marcolino

Homem de bom coração

Cujo maior interesse

Voltou-se para a instrução

Do garoto que crescia

Atento a tudo que via

Já maturando a razão.

A mãe chamava-se Eugênia

Senhora de muito tino

Ela o acompanharia

Em seu fardo peregrino

A vida inteira ao seu lado

No bom e no mau bocado

E ele sempre o seu menino.

Em 1, 8, meia, 5

Mudam-se pra Alagoinha

Sítio onde Seu Marcolino

Inaugura uma escolinha

E também ministra o ensino

Lá Raimundo tamanino

As primeiras aulas tinha.

Em 70, novamente

A família itinerante

Faz as malas e prossegue

Seu caminho para adiante

Agora à terra natal

De Marcolino: Sobral

Lar de todos doravante.

Aos doze, Raimundo adentra

No Ginásio Sobralense

Colégio bem-afamado

Deste estado cearense

E aprende latim, francês

Aprimora o português

O moço beneditense.

Dedica-se de tal modo

Ao aprendizado, o estudo

Que acaba se destacando

Dos demais em quase tudo

Vence-os sem que os menoscabe

Raimundo mostra que sabe

Ser sério sem ser sisudo.

Um Mal porém se aproxima

E ataca o que houver por perto

É a Seca que se alastra

Tudo mudando em deserto

Quanto mais o tempo passa

Mais se vê osso e carcaça

Mais a fome é sinal certo.

Para Alagoinha tornam

Fugindo à calamidade

Mas a miséria os persegue

Sem a menor caridade

Chega, rouba-lhes o pão

Leva-os na ocasião

À quase mendicidade.

Como tantas outras, segue

A família à Capital

Mas também em Fortaleza

Vão as coisas muito mal

Os retirantes sofridos

Humilhados e ofendidos

Levam vida bestial.

Como tantas outras, vai Variação

A família a Fortaleza

Mas também na Capital

É tudo a mesma tristeza

Os retirantes sofridos

Humilhados e ofendidos

Padecem fome, pobreza.

A família à Capital Variação

Como tantas outras, segue

O rapaz Raimundo vai

Montado num pobre jegue

Mas ao chegar, aturdido

Logo percebe rendido

Que a miséria ali prossegue.

Apesar do descalabro

Em oitocentos e oitenta

Raimundo entra no Liceu

E aos seus ampara e sustenta

Dando aulas de matemática

Essa matéria esquipática

Que ao jovem tanto contenta.

Finda o curso secundário

Do qual fez grande proveito

Sonha como itinerário

Noutro curso ser aceito

Em Recife muito prosa

Ingressa na portentosa

Faculdade de Direito.

Enquanto ele estuda, os pais

Continuam na porfia

Marcolino numa Escola

Trabalha na portaria

Dona Eugênia não embroma

Lava, cose, passa, engoma

Labutam inteiro o dia.

Tobias Barreto foi

Um dos mestres do estudante

Sergipano entusiasta

Poeta e orador vibrante

De início positivista

Mas depois um germanista

Admirador de Kant.

Em 1, 8, 8, 4

Pós os exames finais

Raimundo já se formava

Para alegria dos pais

Quem sabe aquele tormento

Do passado sofrimento

Não retorne nunca mais...

Nomeado promotor

Na comarca de Viçosa

Encarrega-se do ofício

De maneira primorosa

Desincumbe-se dos casos

Sem retardos nem atrasos

Move ações vitoriosas.

Não bastassem os deveres

Daquela promotoria

Com diversos afazeres

Entretanto quem diria

Farias ficava a dar

Aulas sem nada cobrar

Aos jovens da freguesia.

Certa feita, por vencer

Uma causa o moço audaz

Contrariando interesses

De políticos locais

Tanto mal-estar causou

Que logo, logo acabou

Transferido pr’Aquiraz.

Produzindo sem descanso

Começa a entrar em cena

Publica versos e artigos

Que ultrapassam a dezena

Discute etnografia

Muita psicologia

Na prestimosa “A Quinzena”.

Vai ao Rio de Janeiro

Onde publica os poemas

Que são seus “Cantos Modernos”

Conjunto que tem por temas

Coisas da ordem do dia

Escravidão, Monarquia

Diversos pátrios problemas.

Volta a Fortaleza e nutre

Certas pretensões políticas

Mas o governo Ferraz

Não suporta grandes críticas

Logo persegue os rivais

E Raimundo dentre os quais

Sofre privações mefíticas.

Com Clarindo de Queiroz

O afamado general

Farias brito retoma

O prestígio social

Pra maior orgulho seu

Ministra aulas no Liceu

Como na Escola Normal.

A seguir assume o cargo

De Secretário do Estado

Porém não perdura muito

No tal secretariado

Pois com a mudança geral

No Governo Federal

Queiroz perde o potentado.

O atual presidente

É Floriano Peixoto

Que depõe governadores

Com mão-de-ferro e alvoroto

Cai Clarindo em poucos dias

Com ele nosso Farias

Retornando ao ignoto.

Entrementes nosso herói

Seu pensamento profundo

Gradualmente aclarava

Num exercício fecundo

E um volume terminava

Do livro que se chamava

“Finalidade do Mundo”.

Em 1, 8, 9, 4

Raimundo faz-se orador

D’Academia Cearense

De Letras — que em seu vigor

É do país a primeira

Nasce antes da Brasileira

E ainda hoje tem valor.

Pouco antes, em 9, 3

Ele casou com Ana Augusta

A quem “Seu Marco” diz santa

Por ser realmente justa

E o matrimônio perdura

Até a morte futura

Da esposa — que já não custa.

Ao primeiro de seus filhos

Foi dado o nome do pai

Mas aos dez meses o infante

Que já dizia “papai”

Também sabe dar adeus

E pra sempre deixa os seus

Por vontade de Adonai.

Dois anos depois virá

A menina Filomena

Parece que a vida irá

Correr de maneira amena

Porém assim não será

Logo Raimundo terá

Aumentada sua pena.

Em junho de 9, 7

Cai no estado de viuvez

Nos extremos da agonia

Ana um pedido lhe fez:

“Que no tempo qu’inda tinha

Bem cuidasse de Meninha

E não casasse outra vez”.

Desesperado, o filósofo

Questiona sem clemência:

“Deus, será que se dirige

Para a dor toda a existência

Ou serei eu destinado

Mais qu’outros ao triste fado

De vagar em penitência?”

Para fugir ao pesar

Apega-se com vontade

À meditação, à busca

De um sentido, da verdade

No novo século a lume

Dá o segundo volume

Do livro “Finalidade”.

Pensa passear na Europa

Contudo é outro o destino

Fica no Rio de Janeiro

E sonha com o pai franzino

Quando o sonho se repete

Raimundo toma um paquete

E visita Marcolino.

Encontra o velho acamado

Qual no sonho mensageiro

Mas antes que aquele exale

O suspiro derradeiro

Dá ao filho valimento

Para novo casamento

E então parte sobranceiro.

Depois da bênção paterna

Farias Brito extravasa

Pois com a jovem Ananélia

Meses depois se casa

E outra mudança advém

Viajam para Belém

Onde montam nova casa.

No Pará Gomes de Castro

Pregava o Positivismo

Doutrina que Augusto Comte

Expôs no seu “Catecismo”

Defendendo a prevalência

Do domínio da ciência

Do falaz tecnicismo.

Raimundo escreve três vezes

Contra o “saber positivo”

Cada vez com vigoroso

Rigor argumentativo

Demonstra sua ousadia

Em prol da filosofia

Do amor especulativo.

A par desses entreveros

Dá aulas na Faculdade

Tão boas, tão desenvoltas

Que cativa a mocidade

Verdadeiro baluarte

Termina a terceira parte

Da obra “Finalidade”.

Em 1, 9, 0, 9

Tenta vaga pro Colégio

Nacional Pedro II

Do país o mais egrégio

Fica em primeiro lugar

Mas haverá de amargar

Impensável sacrilégio.

Ocorrera no concurso

O que ele não supunha

Foi primeiro colocado

E outro em seu lugar se punha

Quem sua vaga conquista

É o grande jornalista

De nome Euclides da Cunha.

Tamanha a decepção

Do desolado Farias

Caiu este adoentado

Perante as patifarias

E nada fez contra a tão

Desonesta decisão

— E tu, leitor, que farias?

Enganado, assumirá

A cátedra apenas quando

For morto o autor d’Os Sertões

Pelo rival Dilermando:

A esposa de Euclides, Ana

Foi a razão leviana

Do duelo miserando.

Em 1, 9, 1, 2 Raimundo

Finaliza “A Base Física

Do Espírito”: longo estudo

De abordagem metafísica

Que exigira esforço rude

Abalando-lhe a saúde

Aproximando-o da tísica.

Publica em 1, 9, 1, 4

Obra de enorme valor

Na qual discute problemas

Como o nada, a morte, a dor

Coisa-em-si, realidade

O fenômeno, a vontade:

Eis “O Mundo Interior”.

Um ano depois concorre

A vaga na ABL:

Por Osório Duque Estrada

A Academia o repele

Eis mais uma dura prova

Que somente lhe renova

As cicatrizes da pele.

Não bastasse tal recusa

Teve artigo rejeitado

Pelo Jornal do Comércio

Órgão mui considerado

Rejeição que o transformou

— De homem pacato o levou

A pensador revoltado.

Num “Panfleto” ele atacou

A “Academia de Tretas”

Criticou daquela Casa

Todos os seus maus poetas

Sobrou até para a prosa

Do famoso Rui Barbosa

Mero contador de petas.

Disse ainda estas verdades

Que a Imprensa era vendida

E o Governo só agia

Por opressão desmedida

E ele mesmo era um conjunto

De ódio e amor tudo junto

Sombras incertas na vida:

“Sou muitos dentro de mim

Uns brandos, uns duvidosos

Uns delirantes, doentes

Uns calmos, outros raivosos

Uns sonhadores, dementes

Outros selvagens, descrentes

Quase todos tortuosos”.

Fato é que o triste filósofo

Demonstrava já cansaço

E nos meses que seguiram

Quedou ressentido e lasso

Pensando que seu viver

Dirigido para o saber

Havia sido um fracasso.

Jackson de Figueiredo

Concunhado quase irmão

Perguntou-lhe certo dia

Qual seria a ocasião

Mais feliz de sua vida

Ouvindo logo em seguida

Muito estranha narração.

Contou-lhe nosso amorósofo

De longa noite febril

Em que mergulhado em transe

Tremores, calafrio

Tamanho seu delirar

Conseguira conversar

Com as pedras do meio-fio:

“Não sei como descrever

Essa estranha experiência

Minha sensibilidade

Como minha inteligência

Apuraram-se, avultaram

Segredos se revelaram

Senti-me Superpotência”.

Agora porém é tal

A sua debilidade

Que os amigos e parentes

Pensam na calamidade

Do que lhe sucederá:

De fato não tardará

A Dama Fatalidade.

Em dezesseis de janeiro

Do ano de 1, 9, 1, 7

O pensador finalmente

Dá com a Morte tête-à-tête

E aceita num gesto heroico

Como um filósofo estoico

O final que lhe compete.

Seu filosofar contínuo

Teve força poderosa

Soube sempre interpretar

Schopenhauer, Espinosa

E dialogar gigante

De igual para igual com Kant

De maneira audaciosa.

Se eu fosse Tigela Inteira

Mais aqui teria dito

Como sou Meia-Tigela

A este pouco me limito

Vou terminando a chamada

“Vida vivida e pensada”

Do grande Farias Brito.

Raros são, caro leitor

Aqueles que remanescem

Imunes aos memoráveis

Males que lhes acontecem

Um destes foi justamente

Nosso herói a quem contente

Digo versos que enaltecem.

O filósofo serrano

Deve entre nós sempre estar

E seu exemplo de vida

Francamente perdurar

A fim de que todo mundo

Realmente qual Raimundo

Insista em filosofar.

Aqui encerro o Cordel

Sobre a vida desse imenso

Brasileiro, cearense

Raro de se encontrar: penso

Importante convidar

Também a filosofar

O leitor com seu bom-senso.

(Do livro MEMORIAL BÁRBARA DE ALENCAR & OUTROS POEMAS)