Conversas entre Amigos ou A Saudade

Conversas entre Amigos ou a Saudade

Felipe largou de ler por aquela tarde em Riocomprido. Pegou a namorada com quem andava atualmente e rumou para Rochas Salgadas. Diversas vezes após o casamento fracassado com uma moça muito modesta para ele, havia tentado casar novamente com alguma mulher séria e interessante. Chegou a pensar uma determinada época que estivesse doente , tanto trocava as namoradas,mas terminou rindo e aceitando a compulsão por variar de que sofria. Afinal, se era doença mental era para lá de boa.

Sentindo se bem acompanhado , pegou o livro que lia ,a companheira, duas cadeirinhas e caminhou para a areia molhada da praia ao entardecer. Leu, dormiu, se espreguiçou e finalmente começou a notar o local. Achou estranhamente familiar uma mulher que caminhava de chapéu e óculos escuros. Um corpo bem feito, mas já devia ser madurona . Conhecia e há tempos não a via. Aliás , ele não a via como muitos na cidade. Mais se escondia que aparecia e tão pouco se interessava pelos homens de Riocomprido. Vivia só e não os procurava. Sabiam,sabiam todos e mais, se sentiam mal com ela por lembrarem do fato que a todos atingiu. Súbito ,sente aquele nó no estômago. Fica surpreso pelo sentimento ter persistido dentro dele. Olha novamente para a figura solitária e meio legendária e pela primeira vez" pensa nela" ao invés do seu egoísmo habitual. Pensa que se todos reagem assim, ninguém pode ajudar ,nenhuma mão se estende para ela. O resultado é a solidão de Nicole. Más línguas a responsabilizavam por isto , diziam que era má ou geniosa, mas não era verdade. Diziam isto para justificarem o modo como a isolaram , como não lhe propiciaram chances de vida. Foram todos tão cruéis ou maus quanto os próprios torturadores da companheira .Sente uma onda de ternura quando lembra a menina loira, doce, alegre e brincalhona das correrias de infância. Depois uma mocinha que prometia se transformar em uma bela mulher e com um futuro brilhante pela frente . E então houve o que houve. A queda e a surra da vida. Qual deles em rapazinhos não a queria? Qual não chorou por ela noites a fio depois do ocorrido? Pois é, mas qual deles se aproximou depois? Nenhum. Ele mesmo, só agora, quando estava cinquentão conseguiu domar a sua náusea , que chegava a lembrar Sartre.

Um corpo de mulher caminha em direção ao mar , despe se do chapéu e óculos e mergulha .Felipe levanta dizendo que ia ver uma velha conhecida. Entra na água gelada e mergulha. Volta á tona , olha, e se encontra com dois olhos azuis. Risonho , pergunta :

-Não lembras ? És a Nicole não é? Eu sou Felipe ,morava lá para baixo na rua atrás da tua.

Nicole não responde porque as ondas engolem os dois que acabam rolando até a praia, às gargalhadas. Conversam um pouco, comentam sobre o mar bravio e Felipe volta se sentindo aliviado, como se houvesse cumprido um dever. O desagrado que sentia "daquela mulher" como vulgarmente a chamavam havia passado .Sente dó agora , um dó que o cega, dó deles, de todos eles ,amigos de infancia pelo modo que a vida havia se desenrolado para cada um, e dó dela.

Sentado na sacada à tardinha sorve um gole de café, sua bebida predileta, e olha o líquido escuro dentro da xícara. Gostava de café porque lembrava a mãe na cozinha. Sempre passando café pelas manhãs para a família. Uma mulher muito afetiva ,feminina ,doce e meiga. Ele costumava ficar sempre perto , ao pé da mãe , sempre em volta e valorizando cada bolinho de arroz que fritava ,cada xícara de café que servia. Fazia isto desde pequeno pois já em menino percebeu quão pouco o pai e irmãos valorizavam seu trabalho de dona de casa.

Eram, os dois, bons companheiros, e se ele agradava aquela mulher simples e suave ela nunca o injustiçou . Entendia o amor deste filho e , escondida ,na cozinha ,costumava o premiar com toda a ternura Foi por pensar que Beth , uma moça modesta mas que não se achava a sua altura, tivesse as mesmas qualidades da mãe que casou. Esforçou se muito para dar certo ,porém Beth logo mostrou insatisfação , dificuldade em se entregar a ele , em o escutar. Já estavam afastados. Finalmente ele saiu de casa. Então começaram as namoradas. Resolveu ser cafajeste assumido , desacreditava das mulheres e não queria compromissos .A morte da mãe coincidiu com a separação. Sentiu a perda da mãe como se fosse da mulher amada e criou a convicção que para ele não haveria mais uma relação terna e afetiva como com sua mãe. Esta relação pertenceu ao seu passado de menino.

O café acabou e Felipe ,entediado,sai rumando para o apartamento de Beth a fim de ver os filhos.

_Vieste da casa de Beth , Felipe?- diz Letícia com a fisionomia inexpressiva no rosto bonito , arrumando as almofadas para que ele sente ao lado de Jean.

- Fui ver as crianças e aproveitei para passar aqui e rever vocês. A propósito, Sílvia e René vão finalmente se acertar, eu soube. Parece que as nossas meninas,agora mulheres se reuniram em um chá de panela , hein Jean?

- A Sílvia e o René vão se acertar muito bem. O que me impressionou foi a recuperação deste homem. Depois que teve aquele problema no ouvido, desistiu da vida, achava que não tinha solução. Foi quando saiu o implante de chips cerebrais. Que reação antes mesmo de se recuperar! René voltou para a música e ainda surdo, fundou o conjunto, a gravadora, e musicou todas as suas letras. Por sua vez , a Sílvia que havia decidido não casar porque não queria se comprometer com filhos, dizendo que o mundo hoje está muito ruim para as crianças , quando soube do que houve com ele no passado o compreendeu inteiramente. Vão ter filhos logo , por causa dele que casa tarde, com uma mulher bem mais moça. Mas que mulher!

- Não está satisfeito ? -pergunta Letícia ,ácida.

- Nada a ver, apenas estou me lembrando como eu estava quando íamos casar , feliz e satisfeito tanto quanto o nosso poeta. Eu lembro como eras quando solteira, a minha menina, a menina por quem me encantei. Tu mudaste muito Letícia...

- Não foram mudanças físicas ,interveio Felipe rápido , temendo uma discussão entre o casal. Afinal como vocês estão?

- Eu estou no psiquiatra, depois que resolvemos manter nosso casamento. Busco meu erro com o Jean .

- Não gosto destes caras , Felipe, mas ela precisa. Está toda embuchada de sedativos. Dia destes nosso filho a trouxe da praia porque se sentiu mal. Pensa que o nosso problema , a nossa crise de casamento poderia ser resolvida a dois, eu e ela, mas acredito que um estranho resolva isto melhor...

- Pelo menos vocês tem uma crise e tentam resolver, sinal que há amor suficiente ainda entre os dois. Ao menos vocês acreditam nisto e confiam um no outro . Pensem em mim que vivo um dia com uma, outro com outra e me sinto a léguas de distancia de algum sentimento mais terno a amoroso por uma mulher. Ontem mesmo cheguei a conclusão que a única mulher a quem amei ternamente e admirei foi minha mãe. Nunca encontrei uma com quem pudesse ter os sentimentos que nutri por ela e mais desejo e vida sexual.

- Olha que vais encontrar, atalha Jean brincalhão.

- Que praga é esta que me rogas? Acostumei com esta vida e aos cinquenta não acontece mais isto.

- Lembrei agora da Nicole, atalhou Letícia. ..Acho que ela está assim também. Falou pouco no chá de cerveja da Sílvia. Acabamos dando l lhe todas, nossos panos de prato bordados,à guiza de brincadeira,os quais levamos para a noiva, desejando que também ela acerte sua vida. Só um homem muito especial para compreender a situação dela. Acho quase impossível nos dias de hoje...

- Sempre sinto dó desta tua colega de colégio, Letícia.

- É exatamente o que senti dia destes quando a vi passar na praia -retruca Jean.

- Dó? Vocês sentem dó de uma mulher daquelas? Vocês já a olharam, acaso como mulher? Nicole fica mais linda e encantadora dia a dia. Os anos que para outras envelhecem ,nela ajudam .Parece menos idade que tem, além do mais sei, é bom papo, lê muito, dedica se a escrever e à poesia. Muita gente tem curiosidade em ler suas escritos , mas ela os preserva, diz que são íntimos. Claro ,tem aquela mágoa e tristeza do passado, mas já se vão muitos anos e, quanto a vocês ,continuam intolerantes com ela como o foram quando se deu o ocorrido. Os homens todos de Riocomprido resolveram não a fazer mais sofrer e acabaram jogando a Nicole fora e isto a feriu mais ainda. Quanto a nós , mulheres, acho termos nos saído pior. Evitamos e a rejeitamos, talvez para nos defender da dor relembrada, sentida, pelo acontecido e foi pior. Conversamos todas na casa de Sílvia motivadas por ela sobre isto. Houve tempo, segundo sei, que Nicole não tinha com quem falar. Quase enlouquece, e quanto aos homens, sempre caíam em cima dela quando viajava. Usualmente eram estrangeiros desconhecem o seu passado ou, se sabem, são homens mais libertos e sensíveis que os de Riocomprido.

- Não cabe a nós, Leticia, diz Felipe ,sentindo se acusado, cabe mais a vocês a trazer para perto de nós.

- Quem sabe assim, como o Felipe falou, Leticia, muita coisa seria diferente, reparou Jean, olhando longamente para o amigo e dando de ombros pensativo e sorridente.

- Porque me olhas rindo , cara?

- Me ocorreu uma idéia louca agora, Felipe. Desculpe as gargalhadas, mas tu , velho touro de guerra, acho que não viste mesmo esta mulher, senão já terias te aproximado. A verdade é que ela dá de dez a zero em todas as tuas gatas. O que há? Te assustei? Porque levantaste súbito?

- Não sei, não sei , responde Felipe passando os dedos nas têmporas já grisalhas. Eu não devia ter vindo aqui hoje.Conversamos sobre nossas juventudes.Sou saudoso dela. Acabo com idéias estranhas,nostálgico, e agora é tarde para mim. Sinto me como se a vida me houvesse pregado uma peça ou me traído...Vou voltar para a cidade. Coisas estranhas aconteceram comigo neste fim de semana. Consegui até me lembrar do passado por aqui. Entretanto ,tenho que voltar para ficar toda a semana que vem com os meninos já que a Beth sai em férias com o namorado , aquele garoto que rondava a nossa turma. Tem padarias agora, é um cara limitado, mas acho que vão se dar bem.

- E tu, Felipe, não és limitado?

- Olha, Letícia, teu marido sabe das minhas limitações e tendências.

Jean , em pé ,sorridente abre a porta para Felipe dizendo baixinho;

- Vai logo que tua tendência deve estar impaciente no hotel. Tu és quem não me pareces muito excitado.

-É , devo estar na hora de trocar a namorada por outra,diz irônico- e Felipe sai rápido, apressado mesmo para recuperar a vida habitual.

Anoitece em Rochas Salgadas quando volta ao quarto para encontrar Michelle . Pela primeira vez falha. Pela primeira vez desconfia de que algo diferente vinha ocorrendo com ele e talvez o caminho para Rochas Salgadas,feito este fim de semana, mais aqueles encontros todos com pessoas dos passado tenha sido o primeiro passo para a sua mudança..

Relações superficiais já não o interessavam,pelo contrário, acabavam o deixando impotente,desesperançado.

Retornou mudado e pensativo. Sente a perda do desejo juvenil..Procura outros valores agora.Procura uma mulher que,como a mãe lhe despertasse admiração.Os dois dias em Rochas Salgadas,as conversas com os amigos de infância,a lembrança dela,produziram novos sentimentos.Achava que se havia conformado com a perda da mãe,que matara sua saudade mas,subitamente, ela retornou com toda a fôrça .E Felipe reflete que o único sentimento que não se pode elaborar,resolver ,é a saudade pois ela só se atenua com o tempo,mas continua internamente persistente,quase implacável e sem solução na realidade.Lembra a mãe , na doce intimidade, e das conversas entre os dois,dos seus telefonemas diários:

Alô!

Alô!

E ela sempre ali,

mas um dia o fone não respondeu,

e emudeceu eternamente.

Tem uma linha ligada ao infinito,

a responder , inexoravelmente , saudade...

Suzana da Cunha Heemann
Enviado por Suzana da Cunha Heemann em 30/05/2008
Reeditado em 16/01/2011
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