A falta inspira, a abundância limita

Ao outro falta um braço, a quem critica falta consciência. Se você diz ao seu igual que ele não ouve – diz na sua língua e ele lê seus lábios – ele o ouviu e você o negou. Quem age assim só pode estar renegando a beleza da variedade de sons.

Fernando Pessoa dizia-se “farto de semideuses”. Faço coro. Andam alguns pelo mundo – acham que andam – e deveriam aprender a ser felizes com quem chamam de “defeituosos”. Quem é “tudo de bom” como vai se superar? E que graça tem mesmo a vida sem superação?

Se eu não tivesse um braço talvez tivesse mais garra de aprender o que muitos não fazem com os dois. A falta inspira, a abundância limita. É curioso observar o número de intelectuais, artistas, empresários, políticos que fizeram sucesso em sua área e nasceram pobres. Será que isso não nos quer dizer alguma coisa? Quem sabe a vontade de se superar não os tenha movido? Tenho impressão que muitos dos que nascem em “berço de ouro” passam a vida achando que o mundo se limita ao “berço”. É mais cômodo, né? Sim, a fartura acomoda.

Voltando à questão da deficiência física. A questão da fala, por exemplo, é algo a se citar. Há diversas formas de calar-se diante do mundo e havemos de convir que ser mudo por deficiência está bem longe de ser a mais grave delas. “Olha o mudinho!” A sociedade logo rotula. Mas quem é o “mudinho”? O que perdeu o privilégio da fala, mas consegue se expressar de infindáveis outras maneiras, ou tantas e tantas pessoas que falam demais quando não é preciso e se omitem na famosa hora do “vamos ver”?

É mais limitado aquele que não tem as duas pernas e, ainda assim, sacode o mundo ou aquele que, mesmo as tendo, o mundo parece ter sempre que sacudi-lo? Pois é, super-homens também ficam paraplégicos e, ainda assim, morrem lutando.

Já pararam pra pensar em quantos dos gênios da humanidade tinham algum tipo daquilo que se costuma chamar de deficiência? Camões não tinha um olho e Drummond era míope. Através de versos geniais, não é difícil se dar conta do quão profundamente eles enxergaram o mundo. Beethoven foi gradativamente perdendo a audição ao longo da vida e já estava completamente surdo quando compôs sua famosíssima “9ª sinfonia”. Estava definitivamente provado que não é só com o ouvido que se ouve. Um dos maiores escultores que o Brasil já conheceu perdeu, devido a uma grave doença degenerativa, praticamente todos os dedos dos pés e das mãos. Parou de trabalhar? Negativo. Produziu mais e mais, amarrando, pra isso, os instrumentos de trabalho aos membros que lhe restavam. Seu nome? Antônio Francisco Lisboa. Mais conhecido como Aleijadinho. Parece um apelido pejorativo, não parece? E é. Imaginem o preconceito que ele sofreu na sociedade brasileira de 200 anos atrás. Imagino, triste, o preconceito que ele ainda sofreria. E não consigo imaginar Minas Gerais sem as esculturas, os desenhos e a arquitetura de alguém que não tinha mãos.

Para que mãos se não para apertar outras mãos?

Ana Helena Tavares
Enviado por Ana Helena Tavares em 19/09/2008
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