Crônica XIV - Memória Gustativa

Ana Esther

As memórias de viagens que a Mochileira Tupiniquim carrega em seu coração e em suas mochilas* de dados são tantas e de tantos tipos... memórias visuais dos maravilhosos panoramas, memórias das emoções sentidas com as diferentes experiências e fatos vivenciados, memórias das pessoas (amigos, conhecidos, desconhecidos...) com quem conviveu... Contudo, mesmo sempre contando os trocados com relação aos cardápios a Mochileira também guarda inesquecíveis lembranças culinárias! De uma forma ou de outra, as comidas que experimentamos em nossas viagens sempre têm um papel significativo ou positivo ou negativo na lembrança geral do passeio.

Em 1986, nas férias de julho da faculdade, a Mochileira Tupiniquim tocou-se para Veranópolis, no Rio Grande do Sul, em companhia de sua mãe. Hospedaram-se em um hotel famoso por receber bem seus hóspedes, a maioria deles representantes comerciais. A Mochileira e sua mãe eram quase que as únicas mulheres no Hotel Princesa do Vale e, portanto, superpaparicadas e reverenciadas. As duas sentiam-se então como pediram aos céus... num lugar bonito, tranquilo, cheio de gente simpática para ocasionais bate-papos, uma temperatura agradável embora inverno, hotel gostoso, barato e com as três refeições incluídas nas diárias... Oh, áureos tempos!!!

Além de ‘áureos os tempos’... a exuberância e abundância do cardápio eram realmente de ficar grudadas na memória de qualquer um. E na memória da Mochileira Tupiniquim então... para ela que sempre viaja economizando justamente no Quesito Alimentação, dessa vez pôde esbaldar-se! E esbaldou-se mesmo. Balança? Nem pensar, ou seja, nem pensou na balança. Na semana que passou no hotel deliciava-se em antecipar as gostosuras que comeria nas três extraordinárias refeições, sopa de anholini ou capeleti, galeto, galinha ao sugo, ravióli, nhoque, espaguete, lasanha, polenta, tudo com queijo parmesão ralado... almôndegas, arroz de carreteiro, feijoada, salada verde, de maionese, de legumes...

Durante a janta algo lhe chamara a atenção, embora os pratos estivessem expostos em uma longa mesa ainda havia garçons que circulavam levando aos hóspedes não apenas as bebidas mas comida em bandejas... Como alguém, com aquele buffet deslumbrante, ainda tinha a coragem de fazer pedido separado, ela não entendia.

Entre os passeios e atividades pela cidadezinha, a praça com seus bancos de cimento em frente à Igreja, uma vinícola local, uma gruta de pedras com imagens de santos, um monumento à maçã, a biblioteca onde elas pegavam livros para ler após o farto almoço e à noitinha depois de assistirem os noticiários na TV do salão... as duas sempre voltavam correndo para o hotel, não podiam perder o horário das refeições!

Na penúltima janta, a mãe da Mochileira não resistiu e perguntou a um dos garçons o que eles equilibravam, de braços erguidos, naquelas bandejas. O rapaz, bem alegre e jovial respondeu com naturalidade, eram os famosos À la Minutas do hotel, vinha gente de longe comê-los. O mais incrível... fazia parte do cardápio da janta –apenas da janta! No que consistia? Era uma para lá de mega chuleta gigantesca feita na chapa com dois ovos estrelados em cima e com uma porção jamais vista de batatas fritas artesanais, isto é, cortadas e fritas na hora...

Cruzes, a Mochileira Tupiniquim quase teve um chilique. Perdera aquela iguaria nas noites anteriores só lhe restando essa noite e a última, quanta malvadeza. Saboreou lentamente sua enorme chuleta de mamute, uma sensação que perdura até os dias de hoje pois nunca mais teve a oportunidade de comer outra que chegasse sequer perto daquela! Ainda bem que na janta do dia seguinte ela repetiu a experiência gastronômica sem par, sua memória gustativa mais querida! Pobrezinha da mãe da Mochileira que não jantava, ficou só no chá com pão e algo leve. Que tormento eles não servirem a inesquecível chuleta no almoço...

* mochila - para não dizer banco de dados ou arquivos.