O Homem da Marquise

Não deixa de causar certa estranheza o fato de haver tanta gordura em seu corpo, enquanto os andrajos que veste e os sapatos rotos que calça denunciam a indigência em que vive. Como ele consegue?

Obeso e mendigo. E, ainda, “proprietário” de um “endereço fixo” (sic).

Nunca nos falamos, mas há aproximadamente dois anos nos cumprimentamos quando eu sigo para a Biblioteca onde escrevo e passo em frente à marquise onde ele goza do sonho capitalista da “casa própria”.

Nunca me pediu nada e tampouco lhe ofereci. Acho que ambos tememos causar algum prejuízo às nossas dignidades se introduzirmos algo além de respeito em nossa relação de cavalheiros. Somos dois homens que se cruzam enquanto carregam as misérias individuais entre as tantas coletivas.

Já o vi sendo insultado por um bando de desocupados e medíocres funcionários de lojas ou de bancos, que zombavam de sua indigência, sem atentar para as próprias. Mas também já presenciei quando ele era acarinhado pela atenção de uma senhora, cujas boas intenções eu não sei se eram reais e sinceras, ou apenas o resultado de seu desejo de aliviar a consciência, ou de sua vontade de conquistar mais um “milagre” para a sua Igreja.

Pouco importa. O fato é que em ambas as situações, suas placidez não se alterou. Manteve o sorriso tímido nos lábios maltratados enquanto, talvez, esperasse que as duas provações seguissem por inércia a inutilidade de seus criadores.

Logo mais, após esse café ligeiro e terminar essa crônica, seguirei para o trabalho e, provavelmente, ao seu encontro. Espero rever-lhe e lhe desejar “bom dia”. Nada mais seria necessário.