CAINDO NUMA GELADA

Por Vicentônio Silva

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Percalços, obstáculos ou impedimentos são encontrados em todos os trajetos, mas se deseja encurtar o caminho aos céus, adote um primo que more em Marília, trabalhe em São Paulo e visite-a de vez em quando sempre trazendo idéias brilhantes cujo testemunho, na capital paulista, centro do desenvolvimento, assegurará bem-estar ao seu cotidiano.

O primo discorrerá sobre o trânsito cardíaco, as oportunidades de empregos e negócios milionários respirando nas esquinas, nas mesas de bares, na fila do restaurante de quilo ou no cruzamento da Paulista com a Consolação. Abordará os principais temas de economia, sugerindo mudanças na política cambial e enfatizando a necessidade de equilíbrio do dólar a fim de ajustar as contas externas das empresas. Defenderá as transformações urbanísticas e elogiará a lei da cidade limpa. Criticará arduamente os problemas sociais, os menores abandonados ou os engaiolados em estruturas vis e apontará a solução à violência escolar ou universitária. Por fim, e não menos importante, incentivará a sustentabilidade, olhará seu telhado e sugerirá a adoção de placas de iluminação solar: mais economia, menos gasto de eletricidade, conforto total no ar condicionado ligado vinte e quatro horas.

Claro que, mulher inteligente, engajada nos modismos e solícita às orientações do primo – afinal, vive em São Paulo, conhece largamente as estratégias de sustentabilidade que salvarão o planeta – comprará as placas, as telhas e os materiais a fim de modificar a estrutura de sua casa e, consequentemente, dar mais qualidade de vida à família. Não apenas satisfeito em dar os preciosos conselhos, o primo também se disporá a ajudá-la a efetuar as transformações e, no dia seguinte, por volta das seis e meia da manhã, poucos minutos depois de sua mãe sair à caminhada diária com o intuito de atualizar as notícias – mulher jamais fofoca, apenas atualiza as notícias, ele baterá à sua porta, arreganhará os dentes, apontará a escada improvisada em cima do fuscão bala:

- E aí, prima? Pronta?

Você escovará os dentes, comerá pão, geléia, ovos mexidos, presunto, queijo e duas fatias de mamão, voltará a escovar os dentes, vestirá calças jeans de oito bolsos a fim de armazenar as ferramentas ao trabalho, ajudará o primo a retirar a escada do fuscão bala, mas antes de armá-la, lembrar-se-á do freezer problemático que, por uma válvula solta, encheu-se de gelo. Com a ajuda do primo – sempre sorridente e sempre da capital – empurrará o freezer até o quintal onde, debaixo do sol quente fulminante, os cachorros brincarão latindo com a agitação da manhã de sexta-feira.

Seu primo então se comprometerá a segurar a escada e a zelar pelo seu bem-estar. Dando-lhe orientações de instalação do teto solar, aconselhará o uso de mangueira de jato forte com o objetivo de limpar as telhas antes de qualquer mudança e, sem perder tempo, você subirá a escada enganchando, num dos bolsos, a ponta do janto de água. Em cima do telhado, olhará em volta e admirará Marília Bela, batizada pelo fundador da cidade em homenagem à Marília de Dirceu. Do outro lado da rua, crianças jogarão futebol utilizando quatro tijolos como traves.

Sua vizinha do lado esquerdo, observando sua intrepidez, perguntará de sua mãe e você, sempre solícita e delicada, dará uma volta de cento e oitenta graus a fim de responder-lhe. Mudança de posição, acionamento da alavanca, a água esguichará implacavelmente. Desequilibrada, ainda terá sorte de cair sobre o primo que, percebendo o desastre, pensou em correr para dentro de casa, mas o pensamento não correspondeu à ação.

A vizinha que testemunhara a queda e as crianças que ouviram os gritos chamarão os bombeiros, a polícia e, de quebra, a imprensa. Os bombeiros tentarão entrar no quintal para os primeiros socorros, mas os cachorros, apesar de pequenos, são ferozes.

Voltando da caminhada, sua mãe se exasperará com a multidão acabando com as orquídeas do jardim e, diante dos fatos, fixará seus olhos:

- Da próxima vez que ele – apontará para o primo – aparecer com a idéia de instalar aquecedor solar no teto, arrebente-o na cabeça dele!

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 26 de outubro de 2012.