Tarcízio, o Barbudinho

No dia 20 de maio de 1985, com 38 anos de idade, morreu meu irmão José Tarcízio Alves de Melo, Tarcízio, o Barbudinho. Uma pancreatite mal cuidada voltou com força total e ele não resistiu. 30 anos se passaram e ainda sinto a presença dele ao meu lado. Era véspera do aniversário de meu pai e do meu irmão Dudu. Dois anos depois, meu pai também já doente, morria.

Tarcízio nasceu tão pequenino que pensaram que não sobreviveria. Mas sobreviveu, para fazer todas as artes do mundo. Lembro-me ainda do dia em que desapareceu. Procurado por todos em todos os lugares imagináveis, até nas lagoas onde vivia nadando. Lembro-me ainda do pavor que senti ao imaginar o que poderia ter acontecido com ele. Ele até que nem ficou tanto tempo assim realmente desaparecido. Quando voltou para casa, vendo a confusão que causara, esgueirou-se para dentro da Padaria, escalou uma montanha de sacos de farinha, alcançou o alçapão que levava até ao teto e lá ficou escondido. Eu não tenho certeza, mas acho que fui eu quem o achou.

Detestava a escola. Fugia sempre para os campos verdes onde se sentia livre e feliz. Como um cabrito. Quanto veio para Lavras foi matriculado em uma escola religiosa, onde mal conseguiu completar o quinto ano. O quinto ano era uma espécie de curso que faziam os alunos que não conseguiam passar no Exame de Admissão e entrar no Ginásio. Ele nunca conseguiu e finalmente o deixaram em paz. Para viver.

Quando chegou em Lavras continuava pequenino e magrinho. Mas uma penugem no rosto denunciava a adolescência chegando. Daí o apelido – Barbudinho. Como isso me fez sofrer! Mas alheio aos meus sentimentos, o apelido pegou. Só fiz as pazes com ele, um dia depois de sua morte. Fui ao cemitério visitá-lo. Hoje não faço mais isso. Meu conceito sobre o pós  morte mudou. Hoje carrego os mortos no coração e os visito quando quero através das lembranças, Mas naquele dia, quando me dirigi ao cemitério, vi,ouvi e nunca mais esqueci.  Um grupo de pessoas assentadas na escadinha de entrada do cemitério. Pessoas simples, não me conheciam, não pararam de falar e nem mudaram o tom de voz. Falaram da pessoa simples e boa que ele era. Cada um contou uma passagem bonita da  vida dele, que eu desconhecia. Quando cheguei junto ao túmulo minha pacificação já se iniciara.

Duas grandes paixões marcaram sua vida : o Botafogo, do Rio e a Olímpica de Lavras. Quando percebeu que era um  perna de pau, tornou-se juiz – para proteger a Olímpica. E fazia isso sem o menor pudor.Era seu dever. H., outro grande apaixonado pela Olímpica contou-me: Os times já estavam prontos para entrar em campo, mas o jogador mais importante não chegava – o décimo segundo, seu irmão, o juiz. Ele não era disso, sempre o primeiro a chegar.Aí esbaforido, chegou. ,Ensaiei uma repreensão, abortada quando ele explicou – estava enterrando meus filhos.

Sim, ele se casou e teve  filhos. Minha cunhada é uma moça alta, bem clarinha e magra. Meu irmão continuava baixinho, só que agora bem gordinho. Meu pai tinha uma casa na entrada da cidade, hoje região quase central e montou ali um lar para eles. A casa tinha um cômodo para comércio e ali foi aberto um depósito para a venda de pães e outras coisinhas mais. E eles gostavam mais de vender e consumir essas coisinhas mais – bebidinhas, tira gostos bem gordurosos, puro veneno que facilitou a chegada da pancreatite. Mas eles eram felizes. Primeiro veio o Renato, nascido com uma anomalia no abdome. Nasceu e morreu. Ele não permitiu a autópsia, abrir filho dele, nunca, jamais. Teria sido prudente – quando os gêmeos nasceram, Paulo e Marcos, também não sobreviveram. Fui ao enterro dos três.

Eu só deixei meu irmão ir embora quando sonhei com ele. Eu estava na casa dele e fui até ao quintal, mas o quintal estava diferente. Uma cerca de arame farpado servia de limites. E lá estava, do outro lado, um campo verde florido de amarelo. Ele caminhava para frente, de repente parou, olhou para trás, levantou os braços como se estivesse se despedindo. E continuou a caminhada tranquilamente. Anos depois, muitos anos, viajando pelo Chile com meu irmão Dudu, vi um campo assim. Verde salpicado de flores amarelas.

Quando morreu, tive uma experiência mística inesquecível. O médico já havia dito que ele só estava esperando minha mãe chegar para morrer. Não havia mais nada que pudesse ser feito. Eu estava de pé, encostada em uma parede, na frente,  a porta do CTI. De repente eu senti que  escorregava e ao mesmo tempo a realidade se transformava. Eu vi a cama onde ele estava e ouvi a enfermeira chamando o médico, apressada e aflita. Dr Shikasta, Dr. Shikasta! Ambos eram indianos. Um semi círculo se formara ao redor dele – toda a minha família estava lá para acolhê-lo. Os que já tinham ido. Todos vestidos de branco. Menos um, o meu tio Chiquito, que em roupas comuns olhava por detrás do batente de uma porta, só visíveis seu rosto triste e o tronco. Acordei no quarto onde a família esperava o desenlace. Recuperei-me e voltei para a minha vigília. Pouco depois minha mãe chegou e saiu. Mal havia dobrado a esquina do corredor o médico abriu a porta do CTI para dizer que tudo tinha acabado.

Tenho dois cachorrinhos. Da janela de meu quarto eu os vejo latindo e brincando. Um deles se chamava Joka, o outro Pongo. Chamavam-se, porque alterei-lhes os nomes. Agora são Lorde Pongo e Joka Espoleta. O Joka me faz lembrar meu irmão Tarcízio. Espoleta como ele. Não, eu não acredito que o Espírito de um homem reviva em um animal, nada disso. Animais têm alma, como os humanos, mas humanos possuem algo maior e o que os tornam semelhantes a Deus. O Espírito. O Joka apenas me faz lembrar de seu atrevimento e isso me comove.
 (Para o meu livro de memórias - Uma casa na frente do rio, um rio no fundo da casa)