Crônica XXVI - Cerveja de Cereja e Brilhos no Abismo

Ana Esther

A Mochileira Tupiniquim quando era criancinha gostava muito de escrever e desenhar. Ela foi crescendo e o gosto continuou, porém meio abafado entre os afazeres que, na época, se impuseram como tendo maior importância. Até que a Mochileira deixou totalmente de lado os seus escritos e desenhos.

Setembro de 1989. Com sua mochila nas costas, a Mochileira Tupiniquim realizava seus sonhos de viagem pela Europa. Uma viagem que estava chegando ao fim, estava agora na Bélgica, último país a ser visitado antes de retornar à Inglaterra onde passaria mais uma temporada de estudos. Bruxelas, a belíssima capital belga, acolheu a Mochileira em um albergue da juventude, o Sleep Well Youth Hostel. Ali, ela conheceu vários outros mochileiros cheios de planos como ela e após ter passeado o dia inteiro pela cidade (mas aí já é outra crônica!!!) foi convidada por uma colega de dormitório canadense para provar uma cerveja de cereja...

Kriek? Mas o que é isso? Tem certeza de que é cerveja mesmo, não é por acaso um vinho com sabor cereja? Não, é Kriek (na língua flamenca), Cherry-beer (no inglês da colega canadense)... cerveja de cereja (na tradução ainda hesitante da Mochileira). Curiosa, lá se tocou a Mochileira em companhia da canadense para um passeio noturno pelo centro histórico de Bruxelas onde a amiga conhecia um aconchegante bar que servia a intrigante bebida.

Servida em um copo com bojo grande arredondado e uma haste comprida a cerveja avermelhada com uma espuma aromática encantou a Mochileira já pelo visual... e o sabor? Nossa, uma gostosura sem par! Simplesmente inesquecível. As duas conversaram pelos cotovelos, a Mochileira agradeceu a amiga pela fabulosa dica e a oportunidade de experimentar a Kriek, mas já era tarde e elas teriam que retornar ao albergue antes que ele fechasse e elas tivessem que dormir na rua! Pelo caminho, não podiam deixar de dar uma passadinha pela estátua de bronze do herói belga Evrard’t Serclaes e passar a mão por ela para dar sorte, segundo a tradição local. A pobre estátua brilha até de noite de tão polida que fica devido a essa tradição.

No dia seguinte, a Mochileira passou o dia em Brugges (ah... mas isso também merece outra crônica...) e à noite retornou para Bruxelas. Desta feita foi a vez da Mochileira recomendar a saborosa Kriek para as duas amigas inglesas com quem passara o dia em Brugges. Antes de chegarem ao bar, visitaram o Manneken-Pis para a Mochileira se despedir. Segundo a lenda, ele foi um filho único que se perdeu do pai num dia de festividades em Bruxelas. O pai foi encontrá-lo cinco dias depois fazendo pipi na esquina da Rue de l’Etuve com a Rue du Chêne! E como ele era um ricaço importantão o fato virou lenda e hoje há, naquela mesma esquina, uma estátua do guri que atrai visitantes do mundo inteiro... Bom, antes de chegarem ao destino, ainda viram os estandes de peixe no Gross Markt. E não é que numa delas havia um peixe muito, mas muito, estranho que encantou a Mochileira e ela até fotografou os peixes em exposição na banca. Ele tinha uma bocarra de meter medo.

Finalmente, as três mochileiras chegaram ao bar, pediram a Kriek e saborearam aquela cerveja tão deliciosa. A Mochileira Tupiniquim morreu de pena por ter de ir embora da Bélgica... eh, eh, eh. Novamente era hora de retornar ao albergue. Novamente passaram pela estátua do Evrard’tSerclaes e a alisaram bastante para terem muita sorte.

Muitos anos se passaram após este episódio em Bruxelas. A Mochileira Tupiniquim tornou a lembrar-se que amava escrever e desenhar. Virou escritora. Em um momento de inspiração, escreveu uma história infantil cativante, Brilhos no Abismo, sobre um peixe muito estranho da família dos lophiiformes. Pois não é que olhando as fotos da banca de peixes em Bruxelas lá estava ele? Foi então que a Mochileira percebeu a grande sorte que alisar a estátua do Evrard’t Serclaes lhe dera. Talvez ainda movida pela inspiradora Kriek!