Sobre (iniquidades da) liberdade, beleza e justiça (entre outros engodos anunciados)

Na semana passada passeou quase despercebidamente nas mídias e redes sociais a notícia de que o Brasil poderá aprovar, até março deste ano, o projeto de lei 728/2011, de autoria dos senadores Marcelo Crivella (PRB/RJ), Ana Amélia (PP/RS) e Walter Pinheiro (PT/BA), que prevê limitações ao direito à greve, além de considerar terrorismo determinados atos de manifestações. A proposta tipifica o crime de terrorismo ('provocar ou espalhar terror ou pânico generalizado com ofensa à vida, à integridade física, à saúde ou à liberdade do cidadão') e foi aprovada na comissão Mista de Consolidação da Legislação e Regulamentação de Dispositivos da Constituição no fim de novembro de 2013.

O PL 728/2011 prevê 'punição dura e forte' (expressão utilizada pelo senador Romero Jucá, do PMDB-RR, relator da Comissão citada; oh, senhor senador relator, quanta expressividade!), entre 15 e 30 anos de prisão, com pena inicial de 24 anos de reclusão em casos com mortes; caso o PL se transforme em lei, o crime de terrorismo será inafiançável e imperdoável, além de não passível de anistia, e a progressão de regime só poderá ser concedida após o cumprimento de quatro quintos da pena. O projeto também considera crimes a incitação e o financiamento ao terrorismo e a formação de grupos com o fim de praticar atos terroristas, outorgando à Justiça Federal competência para processar e julgar os delitos.

De cara, concordo: brasileiros, quase nem conseguimos imaginar o que seja conviver com risco de morte e outros prejuízos, posto que terrorismo é o uso de violência física ou psicológica, através de ataques localizados a elementos ou instalações de um governo ou da população governada, de modo a incutir medo e pavor coletivos, para obter efeitos psicológicos que ultrapassem em larga escala o círculo das vítimas; é tática utilizada por muitas instituições como forma de alcançar seus objetivos, como organizações políticas, grupos separatistas e, até, por governos no poder.

Além disso, o repúdio ao terrorismo é princípio estabelecido na Constituição: a Carta dispõe que a lei incluirá a prática entre os crimes “inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia”. Dura lex, sed lex.

Até aqui, um avanço lógico, esperado e claro deste país que se pretende grande, até a leitura da ementa que resume a proposta: “define crimes e infrações administrativas com vistas a incrementar a segurança da Copa das Confederações FIFA de 2013 e da Copa do Mundo de Futebol de 2014, além de prever o incidente de celeridade processual e medidas cautelares específicas, bem como disciplinar o direito de greve no período que antecede e durante a realização dos eventos, entre outras providências“. E o escopo do PL 728/2011 prevê (lógica, esperada e claramente), que as penas previstas no artigo quarto aumentarão em um terço, se o crime for praticado "em estádio de futebol no dia da realização de partidas da Copa das Confederações 2013 e da Copa do Mundo de Futebol" (inciso III). Pois é: de acordo com o relator da Comissão Mista de Consolidação da Legislação e Regulamentação de Dispositivos da Constituição, o PL deve ser votado em regime de prioridade, para que a legislação entre em vigor antes do início da Copa do Mundo, em 12 de junho próximo.

Sei não, mas tenho lembrado do AI 5... E de forma pouco lógica ou esperada me vem à memória um episódio em 1974 (tempos 'fortes e duros', por aqui, sim; e oh, senhor senador relator, grata pela expressão!) do qual fui uma das protagonistas: um concurso de mini beleza municipal.

Pois bem: ganhei o raio do concurso, apesar da enorme probabilidade que havia de nem participar do certame, uma vez que Mãe era do tipo clássico que não me deixava sequer brincar na vizinhança. Então, eu ia aos ensaios absolutamente feliz e encontrava outras meninas com a mesma faixa etária – e isso me deixava com os pés no ar... Eu passarinhava sem nem me importar em voltar para a gaiola, já que a liberdade – supervisionada, mas duas vezes por semana – continuaria por um bocadinho de tempo, ainda (àquela época, eu não detinha condições cognitivas de abstrair a tese 'quanto mais, melhor').

Mas antes de ganhar o diabo do concurso, tive que me expor numa passarela longa em espaço e tempo. E a lista de chamada do desfile sendo por ordem alfabética – de forma que fiquei meio esquecida (ou assim pensei) entre os extremos – me proporcionou fazer antes, durante e depois de minha performance pueril outra coisa da qual muito gostava, também: observar. Havia um mundo de gente assistindo ao espetáculo, mas parecia mesmo era que as pessoas estavam ali para meu prazer (ah, essa capacidade infeliz de sair de si... e a eterna necessidade de ver mais que ser vista), inclusive as outras participantes. (E como não possuo autorização de qualquer dos outros envolvidos para relatar o caso, os nomes serão preservados.)

Então, entre tantas, havia Aila, com quase dez anos, fazendo a linha 'bela, confiante e antipática' – a única que 'competia' de fato – mas que sequer atingiu o terceiro lugar; Daniela, uma fofa que me abraçou eufórica após o resultado, gritando 'ôba, vou dormir na sua casa!' como se Mãe me permitisse receber amigos, e a quem tive o incontestável prazer de entregar a faixa de primeiro lugar no ano seguinte; Sandra, com quem estudei todo o nível fundamental e cujos traços orientais, pele branquinha de seda e assertividade resistem até hoje; Bianca, com face de fada brejeira e alma de rainha generosa (somos amigas até esses dias, também); e Analice, detentora do segundo lugar por apenas um ponto a menos que eu, cujo rostinho torto seria feio se não sorrisse tanto – uma das pessoas alegres que tive e tenho o prazer de conhecer, com o tipo da beleza interior que só pessoas felizes de verdade tem, e que levou para casa a boneca Amiguinha - o prêmio do concurso, ora, pois todo concurso tem prêmio e esse não foi diferente.

(Certamente, novevírgulanoventaenove entre dez meninas da minha geração desejaram uma Amiguinha, a clássica boneca da Fábrica Estrela, loiradeolhosazuis, com tamanho de criança real, vestida e calçada para festa, substituta de amigas concretas ou imaginárias, projeção setentista das 'amizades' virtuais.)

Mas criança aceita tudo, especialmente se não percebe que algo cheira mal no reino dos adultos: sem atinar para o engano, a injustiça e a covardia dos envolvidos na espoliação, fui à casa de Analice muitas vezes (sim, para isso tive permissão), e brincamos com a companheira que deveria ter sido entregue a mim, não fosse o pai dela, além de prefeito municipal, um coronel reformado do glorioso Exército brasileiro, responsável por nos tirar uma década antes das iminentes mãos de uns comunistas terroristas (pronto, eis porque lembrei do caso). Então, compreendo a razão dos organizadores do certame em dar à detentora do segundo lugar um prêmio de consolação (tempos 'duros' e 'fortes', aqueles: se até Mãe, uma 'fera' em casa, vergou a espinha!), apesar de haver outras meninas com a mesma necessidade, valendo o registro de serem bem mais premiáveis esteticamente – ora, era a porcaria de um concurso de be-le-za, não era?

Dez anos depois, folheando ao acaso um álbum, revi-me bem enfatiotada e sorridente – e quase envergonhada só porque faltava um dentinho –, tudo em preto e branco e memórias com gosto de cinza. Repentinamente, os tons se recriaram para clarear a fotografia e o caso; de lá para cá, sempre que revejo a imagem e recordo de tudo, percebo nova perda: da boneca à dignidade dos envolvidos, da minha confiança nos adultos que tinham obrigação de preservar meu direito, e até, do aprendizado de Analice, uma vez que a forma como reagimos a frustrações serve para nos orientar e proteger.

Como minha mente funciona em círculos paralelos, volto ao 'terrorismo' e ao PL 728/2011, acrescentando que viola nossa Carta Magna, cujo corpo exprime que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente“ (art. 5º, inciso XVI). Registro ainda crítica pertinente à desproporcionalidade da punição ao vandalismo, o qual, mesmo que reprovável, poderia acarretar sanção superior à prevista em crime de homicídio, cuja pena vai de 6 a 20 anos. Como diria o incomparável Millor Fernandes: 'dura lex, excede lex', versão meio latina e muito livre para 'excesso de justiça é excesso de injustiça'.

Nem tanto tangencialmente eu falo de futebol e disputas de beleza; sendo o primeiro uma espécie de concurso de habilidades que exprimem a estesia esportiva – e nada disso perdendo importância enquanto existe fome, escassez de moradia, falta de saneamento básico, educação, saúde e segurança públicas de qualidade incontestável, além de respeito político e cívico, entre outras bobagens neste (salve, salve!) ano de Copa do Mundo, o que desejam novevírgulanoventaenove entre dez brasileiros?

A resposta já fez morada na ponta da minha língua, mas habita agora nos esconderijos da pátria bela, boa de bola e excludente! E outra resposta se circunstancia através da expressão 'ano de Copa do Mundo': talvez queiram só a utopia da alegria e da dignidade.

Brasileiros, somos frequentadores assíduos dos ensaios de nossas vitórias, mas as assistimos como se nossas não o fossem, enquanto continuamos alegrezinhos com (ao menos!) um pouco de liberdade vigiada, porque ainda não temos condições culturais de abstrair a tese 'quanto melhor, mais'. E observamos muito, muito, mas quase não 'vemos'.

Enquanto brasileiros, as evidências concretas dos prêmios que ganhamos por mérito se esvaem de nossas mãos, escorrem pelos vãos dos dedos, enquanto os individuos sustentados por nós para garantir nossa concretude se acovardam ou se locupletam, pois que a maioria é parte da mesma camarilha de abusadores.

Brasileiros, ansiamos cantando e dançando pela permissão de brincar na casa do 'amigo' com nosso brinquedo – nosso! – que lá fica resguardado dos nossos dedos diários e 'ex-proprietariados', porque a verdade de nossa condição poderosa não convém a quem nos 'permite',

Aliás, porque somos brasileiros, a conveniência do 'amigo' em nos receber é mais verdadeira que a nossa, mais 'dura e forte' (oh, senhor senador relator, grata de novo por tamanha expressividade!), mas somos ufanos do prêmio que nos tomaram; então tratamos com consideração e respeito quem nos engana e explora, mantendo também a equivocada vaidade de sermos bem vistos, porque fazemos a linha 'belos, pouco autoconfiantes, mas simpáticos'.

Brasileiros, posamos e sorrimos para fotografias sem qualquer cor ética. E ali nos registramos com nossa melhor roupa, porque é bem assim que as aparências nos enganam, também.

Brasileiros, dormimos em ingenuidade, e, ainda que despertos e mesmo sem haver cedido (nem culpa ou dolo) nosso prêmio, continuamos esperando que ele nos seja devolvido, esquecendo que outros tratos espúrios já o desgastaram e obliterando em nós mesmos a consciência da necessidade de luta por melhores liberdades e direitos.

Enquanto brasileiros, não nos sentimos competentes nem assertivos, e somos desavergonhadamente enganados pelo discurso de alguns quanto a miscigenação 'feliz' de nossas peles, à alegria 'real' de nossas poucas misérias e às belezas 'de graça' que nos rodeiam, e nos deixamos guiar feito crianças a quem prometem um prêmio de consolação, como se devêssemos nos sentir gratos pelos esclarecimentos.

Nesse projeto de lei desrespeitador – portanto, insano – está implícito o interesse imediato de causar medo entre ativistas, pois "a tipificação do crime ‘Terrorismo’ se destaca especialmente pela ocorrência das várias sublevações políticas que testemunhamos ultimamente".

Tudo leva a crer que, se aprovada, a Lei impedirá até qualquer sentimento de indignação e revolta. Então, creio que os senadores tomaram para si o direito de fazer terrorismo psicológico dos mais elegantes e aceitáveis.

Sendo aceitável também a hipótese de ganho moral através de frustração, estou no lucro, mesmo não sendo isso tanto consolo, especialmente neste 'ano de Copa do Mundo': se o PL 728/2011 for aprovado e virar lei, ter vontade de ir embora do Brasil será mera consequência em mim.

Mas nada disso tem importância, porque brasileiros amam futebol. Por meu lado, continuo abominando – e protestando contra – concursos de beleza e iniquidades.

*Para mais informações, acesse:

1. http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2014/01/06/congresso-pode-aprovar-ate-marco-lei-que-define-crime-de-terrorismo

2. http://tribunadaimprensa.com.br/?p=79633

3. http://pt.wikipedia.org/wiki/Terrorismo

4. http://www.brasilescola.com/historiab/ai5.htm

5. http://anacaldatto.blogspot.com.br/2012/08/boneca-amiguinha-de-1979.html

Gina Girão
Enviado por Gina Girão em 30/01/2014
Reeditado em 22/03/2018
Código do texto: T4671117
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.