A calça de Deus

As crianças existem para nos lembrar. Foi isso que faiscou em minha mente quando, há alguns anos, assentado nas escadas do metrô, assistia ao longe um menino que brincava alheio a todo o barulho da avenida próxima.

Esta semana uma delas fez de tudo para não me deixar esquecer. Sexta à tarde peguei o ônibus que me levaria à fisioterapia e, ao passar pela roleta, uma menininha assentada em uma cadeira de rodas me chamou com o dedinho para que me aproximasse. Quando fiquei ao seu lado, me perguntou bem baixinho, “qual o seu nome?” Baixinho também, respondi. Em seguida lhe fiz a mesma pergunta e ela enrubesceu. A Mãe, que estava no banco ao lado, falou em seu nome, “É Palene, o nome dela é Palene”. Eu e Palene fomos rindo e brincando até chegarmos à associação mineira de reabilitação, onde ambos éramos pacientes.

A doçura e inocência daquela criança me disseram suavemente que não há barreiras reais na relação humana, elas são imaginárias e foram instituídas há milênios por um velho rabugento chamado Orgulho da Silva.

O quanto perdemos todos os dias por acreditar na invenção deste senhor é tão grande, mas tão grande, que nem todos os supercomputadores do mundo conseguiriam calcular.

Ouvi alguém dizer há muito tempo que a humanidade ainda não foi destruída por uma guerra nuclear devido às Mães que, de alguma maneira, impediram que seus filhos apertassem o “botão vermelho”; mas, se iremos continuar a existir, certamente será, em grande parte, devido a esses recadinhos que engatinham e adoram pirulito.

Para exemplificar, vou lhes contar a melhor “historinha” que conheço:

- Minha bisavó materna era costureira. Contam que era extremamente caprichosa. A costura a ajudava complementar a renda para alimentar uma enorme quantidade de filhos. Certo dia, enquanto tentava terminar uma grande encomenda, a meninada começou aquela anarquia que fazem as mães se questionarem, e foi o que a minha bisavó fez. Vendo aquela confusão e o trabalho ainda por acabar, ficou furiosa e disse bem alto, “Óh, minha nossa senhora, o que foi que eu fiz pra Deus?”. O caçula, que ainda era muito pequeno, vendo a mãe com aquela expressão de desespero, querendo ajudar, respondeu de imediato com uma carinha de medo, “foi uma calça, mamãe!”.

Humberto Brusadelli
Enviado por Humberto Brusadelli em 23/10/2014
Reeditado em 24/10/2014
Código do texto: T5008779
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.