PAI E MÃE
                                Republicação – Crônica de 2004
               Inspirada na música "Pai e Mãe" de Gilberto Gil
 

 
 
     O pai que me habita tenta sempre ser uma mulher amorosa e a mãe em mim um homem justo mas, às vezes, essa troca de papéis gera apenas uma enorme confusão nos papéis.
     Diz Chico Buarque no Fado Tropical: “E se meu coração nas mãos estreito, me assombra a súbita impressão de incesto".
     Quando eu te beijo, meu amor, é tanta vez com os lábios de tua mãe, daquelas mães antigas, sempre à beira do cais, em noites de tempestade, rezando pela volta dos navios com seus marinheiros a salvo. Quando me beijas me assombra, às vezes, a súbita saudade de meu pai.
     'É como se não houvesse senão mães e pais, todos os demais papéis sendo apenas variações dessa potência primeira gerada da união de dois corpos e prolongada através da vida, por todos os outros corpos, potência sempre aparentemente outra.
     Pai e mãe tanta vez implacáveis no seu amor e na necessidade ditada pela Lei de restabelecer a Justiça através do Sacrifício. E então o filho se vê só, em hora de Sacro-Ofício e pergunta: PAI, POR QUE ME ABANDONASTE? Mas, pai e mãe mantêm os lábios selados. Só resta ao filho confiar-se à escuridão do Silêncio Que Nada Diz e, apesar disso, esperar. Esperar contra a esperança, esperar sobre a esperança, como sobre um barco à deriva. Esperar, apesar de. Confiar-se a.
     E, enquanto isso, a canção fala de um amor sem brechas, sem qualquer fratura. O céu azul é apenas um céu azul. Na árvore, um pássaro canta. É apenas um pássaro que canta e essa é a verdade simples e transparente. Simples e transparentes  todos os pais e mães do mundo, Um Único a ouvir, conosco, este pássaro cantando na tarde azul.