No país dos poetas

(à memória de Sophia de Mello Breyner Andersen,

na data em que completaria 95 anos)

Nos dias que correm, ler é considerado uma traição, um ato tão inútil quanto desrespeitador da ordem pública e dos bons costumes. Ler é um ultraje que ofende os mais elevados e nobres preceitos morais, que estipulam que há uma hora certa para começar a trabalhar, que há uma hora certa para acordar, que há uma hora certa para atender às imperiosas necessidades fisiológicas da nossa fraqueza humana, que há uma hora certa para comer, para beber, para urinar e defecar, e todas essas coisas que têm por força de ser feitas, que há uma hora certa para falar - e muitas mais horas certas para ficar calado -, uma hora certa para lavar os pratos ou varrer o chão, uma hora certa para sacudir tapetes e fazer a cama e lavar a roupa, uma hora certa para trazer à luz os filhos que hão de ser da pátria e do mundo mais do que nossos, uma hora certa para ouvir, uma hora certa para assistir a programas medíocres de televisão ou ao tédio bem disfarçado de um qualquer jogo de futebol, uma hora certa para acatar e aceitar e suportar e assimilar, uma hora certa para pagar, uma hora certa para dormir até à hora certa de acordar outra vez para repetir todas as laborações ditadas pela rotina diária das pessoas de bons costumes e de decência comprovada.

No país dos poetas, todos são decentes e cumpridores, logo ninguém tem tempo, paciência, curiosidade, disponibilidade, interesse, necessidade ou, sequer, vontade - de ler um livro. No país dos poetas, acabou o reinado do sonho e da subversão, e vigora portanto a produtividade máxima e a cultura do tédio entretido. No país dos poetas, ser poeta é fazer versos com palavras que rimem tristemente com amor, como por exemplo, calor, sabor, pavor, fedor, estupor. Ah!, esperem lá, estas não servem… No país dos poetas, os versos só podem rimar com as palavras certas, e as palavras só são certas quando não denotam ou subentendem o desacato intelectual ou a perturbação dos velhos costumes.

O país dos poetas, está visto, é uma porcaria de uma valente seca, e já todos perceberam porquê. Onde não há tempo nem espaço para imaginar, escrever, ler, degustar e partilhar um simples poema, não há a liberdade necessária para criar um amanhã digno do futuro sonhado um dia por nós ou pelos nossos antepassados. O poema planta os alicerces daquilo que nos queremos.

O que nos queremos?