A formiga e o mundo... vasto mundo*.
 
Nem sei como pude parar a tempo. Foi tudo muito rápido. Num mesmo instante, senti-me coagido a obedecer ao hábito e esmagá-la e senti-me admirado por ver o tamanho da carga que ela levava. Não lhe pisei.
 
E por que não? Que importância teve esse gesto na ordem do cosmo? Será que foi ali que eu assumi meus poderes divinos de decidir entre a morte e a vida? Será que ela soube da iminência da própria morte?

Por que eu não a esmaguei?

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- Porque você é bom e poupou uma das criaturas do Senhor.

- Porque você é um filho da puta e a condenou a continuar suportando cargas imensas, sem nem mesmos saber porque...

 
§§§

A carga, a vida, a morte e o esmagamento. Atos singulares, divididos e, no entanto, unos na desimportância do que nem sabemos.

Qual a diferença entre tê-la esmagado ou ter deixado que as cargas da vida o fizessem de modo mais lento e cruel?

- Não digas isso, pois o excesso de cargas é que haverá de enrijecer os seus músculos e a sua alma.

Qual a diferença entre a morte instântanea e única e a repetida diariamente?

Eu! Eu sou a diferença! Sou o destino, sou o deus da morte e da vida.

Eu deveria tê-la matado. Seria delicioso desafiar o maldito que nos condena a morrer mil vezes sob as cargas sem sentido de Sisifo.

E delicioso seria contar que eu fiz, enfim, a verdadeira revolução e libertei a pobre escrava da folha verde.

Sim, delicioso, olhar, ouvir e sentir os "bons" recriminando-me; vociferando as suas ladainhas de frases feitas e pensamentos pequenos.

Não percebem, tolos, as próprias cargas que carregam e o quanto é medonho o consolo que lhes ordena fingirem-se felizes.

Pouco sabem da falta de sentido que nos permeia. Pagam contas, buscam parceiros, copulam e trabalham (sim, pois é isto que nos enobrece...). 

Maldições haverão de proferir contra o velho louco, comunista, anarquista e ultrapassado.

Alguns, talvez, tentarão compreender o meu ato e terão paciência com minha demência (rima inoportuna...). Dirão outras frases e citarão teorias psicanaliticas que fazem muito sucesso nos Estados Unidos da América (sim, é claro que essa lhes é a referência...). Repetirão o que leram em edificantes livros de auto-ajuda e pedirão que algum santo me acuda (outra rima maldita...).

São piores que os outros, pois, como aqueles, querem matar-me, mas, também, querem fingir a inocência de serem "bons", modernos e descolados. Politicamente corretos, antenados com a nova moral dos dias sem preconceitos (G. não faz ideia que preconceito é sinônimo de pré julgamento).

Um homem que trabalha na televisão, berra que os "bandidos" matam "inocentes" e eu me pergunto quem será quem? A arrogância da bondade me irrita.

Vai, formiga, mas não me olhe mais...




*Trecho extraído da obra de Carlos Drumonnd de Andrade, "O Poema das Sete Faces".


Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, verão de 2015.