O apartamento que não precisa de ninguém

- Julio era um cara bem legal de início! Diz pra mim o Sr. Otacílio, antigo zelador daquele apartamento abandonado, ele afirma que fora o último homem com quem Julio dirigiu as últimas palavras antes da morte, lembrando que Julio morreu quatro anos depois de pronunciar suas últimas palavras a alguém.

Ele continua:

- Julio conversava com as pessoas antes de enriquecer. Quando morava na velha casinha cedida a muito custo por seu tio Amaral a vida de Julio era bem simples; Julio era uma pessoa sociável, sabia utilizar muito bem a hipocrisia necessária ao convívio social. Ah um adendo! Amaral era um velho ranzinza, único parente que Julio tinha, e único herdeiro do velho, já que Amaral deserdara todos os outros possíveis herdeiros, e não se sabe o motivo, escolhera Julio para dar continuidade àquilo que jamais começou: o projeto de transformar aquele velho apartamento num hotel 5 estrelas. Julio dava “bom dia” às pessoas, dizia “obrigado”, pedia até “desculpas”, de vez em quando Julio até dizia “eu te amo”. Julio dividia a mesa num restaurante. Julio tomava cerveja com amigos. Julio torcia até para um time de futebol daqui do bairro. Julio era um sujeito comum que precisava de pessoas até o fatídico dia em que o velho Amaral morrera de câncer. Julio virou a cabeça completamente. Não se sabe o motivo. Alguns dizem que o dinheiro “subiu a cabeça”, não se sabe quanto Julio herdou, mas seja lá o valor herdado, só aquele apartamento já valia muito. De início, assim que saiu daquela velha casinha do bairro, e fora para o apartamento do centro, Julio ainda dava-me “bom dia” quando passava por mim no apartamento, seja qual fosse o horário, dizia ele que “bom dia” servia também como “boa tarde” e “boa noite”, mas a verdade é que dava somente “bom dia” para não ter de pensar se já era tarde ou noite, já que este curto período em que pensaria se fosse “tarde ou noite” o faria ficar por mais tempo diante do seu interlocutor. A arrogância de Julio aflorou veementemente que um mês depois que tinha todas as posses do velho em mãos, passou a dizer que “não precisava de ninguém”, pois já tinha tudo o que precisava. Pouco a pouco Julio só dirigia a palavra a outrem para assuntos formais, quando ia cobrar os alugueis dos condôminos dizia secamente, sem nenhuma hipocrisia necessária para o diálogo; tipo “oi tudo bem?”, não, Julio simplesmente chegava ao condômino e dizia “ainda não pagou o seu aluguel” e esperava uma resposta, e se tal resposta não fosse sobre o aluguel, Julio simplesmente ficava em silêncio, sem o menor constrangimento. Pouco a pouco os condôminos iam deixando o apartamento e procurando outro lugar para morar. No dia em que fui despedido, Julio simplesmente disse “não preciso de você, vá procurar outro emprego”. E esta fora a última vez que dirigiu a palavra a alguém. Pouco a pouco chegava aos ouvidos dos vizinhos e dos comerciantes em redor do apartamento que “Julio não precisava de ninguém”, e a cada dia menos se via a figura de Julio, nem que fosse para sair à rua para tomar um ar, o apartamento ficou vazio, exceto pela sua presença, todos os condôminos foram embora e todos alegavam o mesmo: “Julio não precisa de ninguém”; a padaria onde Julio comprava diariamente o pão da manhã deixou de vender o pão quando o padeiro descobriu que Julio não precisava de ninguém, a empresa responsável pela internet e TV a cabo cortou os serviços devido à autossuficiência de Julio, a empresa que fornecia água fez o mesmo (diziam os vizinhos que Julio tinha uma caixa d’água muito grande, e que reaproveitava a água da chuva), a empresa que fornecia energia elétrica também cortou relações (Julio utilizava energia solar), enfim, pouco a pouco Julio deixou de ser assunto, pois como não precisava de ninguém, deixou de ser assunto também. Há dez dias o cheiro em redor de seu apartamento estava insuportável, um cheiro terrível de carne podre, no entanto, o dono da funerária disse não ter um caixão adequado para uma pessoa que não precisa de ninguém, e o coveiro do bairro disse que uma pessoa que não precisa de ninguém não precisa de alguém para enterrá-lo. Enfim, desde então todos se referem ao apartamento como “o apartamento que não precisa de ninguém”. Permanece lá. Vazio. Silencioso. Frio. Fedorento. Não se sabe se o cheiro é do cadáver ou do esgoto aberto que ninguém consertou, pois Julio não sabia consertar e não precisava de ninguém.

- Obrigado pelo depoimento Sr. Otacílo.

- De nada. Disponha! E jamais esqueça uma coisa: Quem não precisa de ninguém, certamente precisa de alguém.

- Obrigado!

Luciano Cavalcante
Enviado por Luciano Cavalcante em 28/03/2015
Código do texto: T5186746
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