A Curva

De lá de cima olhando em direção a ela uns trezentos metros abaixo, ficávamos todos os três medindo e avaliando, com um certo tremor na barriga. A construção do carrinho tinha levado vários dias, tábuas, serrotes, pregos, a escolha das rolimãs mais adequadas e uma preocupação não usual em garotos como nós; princípios aerodinâmicos, pontos de frenagem, tangências, derrapagens controladas...

O carrinho não havia sido testado, porém segundo nossos cálculos (e esperanças) ele deveria se comportar bem logo na primeira descida. Estava uma bela tarde de sol e havia pouco ou nenhum trânsito de veículos em nosso "circuito" nem mesmo a polícia era vista fazendo suas rondas a pedido dos poucos moradores da região, que não suportavam os barulhos e ruídos da adolescência e do sonho. Agora faltava pouco, era só sentar no carrinho e dar um pequeno impulso...

- É só ficar pela direita até aquele pequeno buraco e a partir daí ir fechando em direção a guia da esquerda e nesse local fechar com tudo para a direita, completar o S bem fechado e ganhar a reta a toda velocidade. Foi o que disse o Paulo, com expressão séria e depositando em mim uma espécie de incentivo e confiança e eu com aquele frio na barriga que não passava.

- Vai lá Fre, vai com tudo. Falou meu irmão com a autoridade de seus 11 anos. Era isso, estava tudo pronto, apenas bastava ir. No domingo anterior um de nossos amigos havia quebrado a perna, justamente no ponto onde deveria ser feito a tangência, ao tentar controlar a derrapagem causada pelo erro na tomada da curva, tentou frear com os pés e a perna foi prensada entre o eixo dianteiro do carrinho e a guia da calçada. Não deu outra, fratura exposta e gesso por noventa dias.

Numa outra corrida a aparição de um espectador inesperado, a Polícia, foi uma loucura total. Corremos para dentro do mato tentando fugir, mas eles pegaram vários dos "pilotos" inclusive meu primo Fábio. Aí aconteceu uma cena engraçada, o Paulo com expressão furiosa se dirige para o carro da polícia, onde o Fábio já estava dentro, e na frente de todo mundo abre a porta e diz para o Fábio descer que ele não iria para lugar nenhum!

Resultado: Tanto o Paulo com o Fábio foram levados a Delegacia onde passaram por uma dura do delegado que só os liberou com a presença dos pais e depois de destruírem os carrinhos que pegaram e lá estávamos mais uma vez. Sentei no carrinho, me coloquei em posição e... soltei os pés e o carrinho começou a descida, nesse momento, como pressão adicional, meu irmão e o Paulo já estavam posicionados ao lado do ponto de tangência que dava acesso ao retão.

Aos poucos fui ganhando velocidade e o medo foi sumindo e uma emoção enorme foi tomando seu lugar, o pequeno buraco se aproximando velozmente, o vento, os amigos, o barulho das rodinhas penetrando pelo peito numa emoção jamais sentida e o orgulho de ter largado lá do "top". Foi fácil fazer a primeira tangência para a esquerda, o carrinho era muito estável, nossos "engenheiros" sabiam trabalhar muito bem.

No local onde devia fechar com tudo para a direita, minha velocidade já era total, foi quando seguindo as instruções, entrei com tudo. O carrinho ameaçou sair com a traseira e eu ameacei pular fora ou meter os pés no chão para frear, mas consegui fazer a tangência bem rente ao meio fio e ganhar a entrada do retão, balançando para os lados, mas corrigindo a tempo. E fui descendo, descendo o retão, que alegria, eu tinha conseguido, fui até o fim onde a reta terminava e na terra o carrinho foi parando.

Olhei para trás e vejo lá longe perto da saída da curva o Paulo me acenando e no meio do retão agora vencido, meu irmão correndo alegre em minha direção, acenando, gritando meu nome todo contente. Agora eu era um deles também. Tinha conseguido ultrapassar a curva e descido o retão com tudo, estava pronto para a vida que viria.