Os Caminhos da Vida

Lá estava eu, com meus 11 anos de idade, atrás do balcão do Bar do Sr. José. Estávamos em dezembro de 1945. E eu trabalhava já em tempo integral, depois de ter tirado o diploma do primário no 5º Grupo Escolar de Campinas. Por causa da escola, no bar eu havia começado a trabalhar em julho daquele ano, só à tarde.

Eu estava muito feliz, já ambientado com o trabalho e com os fregueses. O bar, que talvez fosse o melhor do Centro de Campinas, tinha um enorme movimento. Na época, o Café São Joaquim era o campeão de vendas. Vendíamos vários quilos por dia, servido em xícaras. Vendíamos, também, bebidas nacionais e estrangeiras, das melhores, e doces e salgados para todos os gostos.

Para mim, mesmo naquela idade, que sempre fui um observador de tudo o que se passa ao meu redor, era uma verdadeira faculdade. Seguindo as orientações do senhor Coelho eu tinha de ser gentil, humilde e prestar muita atenção aos pedidos dos fregueses.

Ele me dizia que o freguês sempre tem razão. Eu ia seguindo feliz no trabalho, que era muito, pois todos os donos de lojas e seus funcionários da Rua 11 de agosto à Rua Visconde do Rio Branco, que cortava a Rua 13 de maio, eram nossos fregueses. E ainda tinha os da Rua Costa Aguiar, onde ficavam os maiores atacadistas de Campinas, armazéns de sacas de cereais com muitos funcionários.

Nessa época, lembro-me bem do “Vareta”, um crioulo forte e muito alto que entre descarregar um caminhão de sacas de arroz ou feijão dava uma corrida até o nosso estabelecimento. Ele me disse, na primeira vez que o vi: “..Você irá se acostumar comigo. Toda vez que eu vier aqui você enche aquele copo de aguardente, e vai marcando.”. Então eu coloquei o copo cheio e ele virou de uma só vez. Coisa que fazia umas 4 vezes ao dia, e ele pagava todos os sábados.

Um dia o meu patrão, Sr. Coelho, perguntou ao Sr. Jorge se o Vareta era de confiança. O senhor Jorge respondeu: “.. O Paulo, que vocês chamam de Vareta, é o melhor saqueiro da Rua Costa Aguiar. Ele não é só meu funcionário, pois todos os armazéns o chamam para trabalhar, pois quem vê a magreza dele se espanta vendo-o carregar sacas de 60 kg na cabeça e subir 5 degraus para empilhar a mercadoria. E quanto à confiança no Paulo, eu deixaria a minha casa nas mãos dele e iria para o Líbano com toda a minha família, visitar a Terra onde nasci. Mas não trocaria o Brasil por nada deste mundo. Hoje eu sou brasileiro com muito orgulho..”.

Entre os nossos fregueses tinha o Arlindo, que por ter muitos calos nos pés, andava meio “esparramado”. O seu apelido era “2 horas”, por essa razão. Ele tinha um Chevrolet 36 de 4 portas, verde e bordô. Trabalhava para dois médicos que tinham consultório no prédio Santa Matilde. Mas em algumas emergências ele levava outras pessoas para algum hospital nas imediações, sem qualquer custo. O carro dele ficava estacionado bem perto do nosso Bar, e o “2 horas” fez muita caridade e estava sempre pronto a ajudar.

Num dia em que 2 garotos como eu faltaram ao serviço, no Bar, ele pegou um avental e foi lavar xícaras, pratos e copos. E nada pedia por isso. Naquela época ele deveria ter uns 40 anos. Hoje deve estar numa dimensão superior à que nos encontramos. Foi uma grande alma que encontrei em minha vida.

Outro homem de quem eu não poderia esquecer era o “Canjica”, também um crioulo forte e muito alegre. E só poderia ser, pois no carnaval era o melhor baliza da batucada do Leão da Várzea, que era a melhor Escola de samba de Campinas. O Canjica também carregava sacas na Costa Aguiar e também era nosso freguês. Só bebia café, e quando o Sr. Coelho dizia, em tom de brincadeira, que aquela boca era de tomar pinga, o Canjica retrucava, sempre brincando, e quando a Dona Elza, esposa do Sr. Coelho estava por perto, ele dizia: “Oi, mãe, o pai está desfazendo de mim..”. Era uma bela amizade que todos tínhamos com ele.

Muitos anos depois, quando do carnaval de 1952, quando eu já estava quase com 18 anos. Ele estava ensaiado na batucada do Azul e Branco, Escola de samba que havia atuado no carnaval de Campinas no fim da década de 1930, e que segundo o meu pai, ele próprio e outros amigos dele, todos ainda solteiros, ajudaram a fundar, que voltava ao carnaval de Campinas. Mediante isso, eu fui assistir ao ensaio da Escola, ali embaixo da sede do Campinas F. C.. Em dado momento, um senhor que parecia ser diretor da Escola de samba me disse: “.. Pegue um daqueles surdos e experimente para ver se você leva jeito...”, porque a batucada do Azul e Branco, por tradição era apenas formada por brancos. Não era um preconceito, mas apenas para seguir uma tradição e manter a linha da Escola.

E falando do “Canjica”, ele me reconheceu, veio me abraçar e disse: “..Você leva jeito. É só acompanhar a batida.” E continuou: “..O pessoal aqui vai formar uma escola de samba só de brancos. Mas irá precisar de uns dois balizas. Mas aos brancos, falta aquele molejo que nós, negros, temos. E você, com seu surdo é só seguir o ritmo...”

Eu ensaiei alguns dias e quando o senhor Armando veio me dar a lista do uniforme da Escola, faltava ainda um mês para o carnaval. Levei o pedido para casa e mostrei ao meu pai. E então ele me disse: “..Eu não posso lhe comprar todas essas coisas que foram pedidas..”. Eu não tinha como comprar, apesar de na época ganhar mais do que meu pai, na Fábrica de Cola, do Senhor Vacari.

Então esse foi um sonho que passou. Fui até o encarregado da Escola de Samba e disse: “..Ponha outro no meu lugar..”. Então ele me disse, com um abraço emocionado: “...Logo você ? que tinha pegado bem o ritmo!.. Vá em paz!..”.

Mas falando em Antônio Vacari, me lembrei de uma conversa que tive com ele. Alguns dias antes do carnaval ele veio me oferecer um trabalho extra depois do horário normal e disse: “... o Guilherme Bartos gostaria que você fosse o seu companheiro nesse trabalho..”. Depois de aceitar, o Senhor Vacari me perguntou se havia pulado muito no carnaval. Ai eu lhe relatei o caso do Azul e Branco. Então o senhor Vacari me disse, quase me censurando: “...Laércio, por que não veio a mim? Eu teria lhe emprestado o dinheiro e depois iria descontando, suavemente, nas horas extras que você fosse fazendo. Essas oportunidades não se perdem na vida..”. E ainda acrescentou: “...Eu não participo de carnaval, mas todos têm o direito de um divertimento.

Naquele dia eu descobri que o senhor Antônio Vacari, além de ser um dos melhores patrões de Campinas, honesto, franco, humano, tinha um coração maior do que ele. Era um grande líder espiritual no Centro espírita Alan Kardec. Eu também participava de reuniões espíritas na casa de meu tio João Cardinalli.

Eu ainda teria mais uma prova da bondade do senhor Antônio Vacari, alguns meses depois, já em 1955, quando eu já havia conseguido uma vaga na Cia Mogiana de Estradas de Ferro, na carreira de trens. Então ele me disse: “..Você tem o dia certo para começar na Mogiana..”. Então eu lhe disse: “..Assim que o senhor me liberar do aviso prévio..”. Então ele me disse: “..Amanhã e depois eu devo estar em São Paulo. Assim que voltar nós acertaremos isso..”. No dia em que ele voltou, logo pela manhã ele me chamou ao seu escritório, e disse: “..Laércio, você pode se apresentar amanhã na Cia Mogiana. E eu desejo que você seja muito feliz. Aqui está o seu pagamento do mês atual, o abono de Natal e uma carta de recomendação para os seus novos empregadores..”. Ai eu lhe disse: “Mas o mês ainda está na metade. O senhor está me pagando a mais. E a gratificação de Natal. Ainda estamos longe”.

Então ele me olhou como um pai e falou: “..Você, Laércio, foi um exemplo para todos. Sempre cumprindo as ordens com muita dedicação e amor ao serviço..”. Em seguida me deu a carta que no último trecho dizia assim:

“...Sr. Chefe da Cia Mogiana de Estradas de Ferro, eu estou perdendo um grande funcionário. Em compensação, entretanto, os senhores estão ganhando um futuro grande foguista e maquinista..”.

O senhor Antônio Vacari, hoje, deve estar numa dimensão onde só as pessoas que passam por esta terra, fazendo o bem, podem estar.

Laércio
Enviado por Laércio em 30/08/2015
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