A morte como companheira



Não há quem, pelo menos uma vez na vida, não tenha refletido sobre a morte. Parece tenebroso, agourento, mas faz parte da vida
     A gente nasce, cresce, fica velho e morre. É inevitável. Feliz quem chegou à velhice, passando por todas as etapas da vida, experimentou o mel e o fel, cresceu e evoluiu com as intempéries e as calmarias. Alguns não tiveram esta oportunidade. Foram vítimas precoces de balas perdidas, desnutrição e fome. Contudo, se alguns morressem cedo, ninguém lamentaria.
      Chico da Cruz viveu cento e dezenove anos, quatro meses e onze dias. Foi encontrado dentro de uma vala que ele próprio cavara, debaixo da mangueira que ele mesmo plantara na infância e onde queria ser enterrado. Morreu no último dia de fevereiro do ano bissexto de 19... Quando o filho mais velho, que não se casara e viveu na fazenda fazendo o trabalho duro e completaria cento e um anos, percebeu o cachorro jogando terra com as patas sobre a vala, ciscando como galinha, soube que o pai deixara a vida. Interrompeu o trabalho do cão, para que ele esperasse a família se reunir e dar o último adeus ao patriarca.
      Eram oito horas de uma manhã ofuscada pela forte cerração e confusa pela algaravia das aves e dos animais domésticos. Somente às dezoito horas em ponto, hora do ângelus e do tanger do sino da pequena capela da Fazenda Nossa Senhora do Rosário, foi que Francisco da Cruz Filho conseguiu juntar os vinte e um irmãos, duzentos e quinze netos, noventa e seis bisnetos, dezenove tataranetos e três filhos de um tataraneto. A razão de extensa prole era pelo fato de Chico da Cruz não admitir o uso de contraceptivos proibidos pelo Papa. Não fossem os três que nasceram mortos, um que se desviou dos caminhos de Deus e fora assassinado por um marido ciumento e outro, que morrera de varíola, o velho Chico da Cruz e Dona Manuela teriam ao todo vinte e seis filhos.
       Dona Manuela era bem mais nova que Chico da Cruz. Ao chegar à beira da cova, reagiu de um modo, que deixou seus descendentes com um misto de medo e satisfação: cuspiu no rosto do defunto e praguejou: - Bosta do demônio, ao seu lado eu fui a mulher mais infeliz do mundo, você nunca soube como odiava o seu bafo de cachaça, suas mãos ásperas e seu corpo asqueroso tremendo em cima de mim. Nem mesmo os filhos que me deu, pude partilhar alegria, pois você os tratava pior que os seus porcos que chafurdam na lama. Como rezei para que morresse, seu desgraçado, filho do cão. O terço que nos obrigava a rezar antes de deitar, as penitências que fazíamos, pedindo chuva em tempos de seca, carregando pedra na cabeça até o cruzeiro lá no alto do morro podem ter lhe dado vida longa, mas não evitarão que você queime no inferno. Você cometeu perjúrio, teve filhos bastardos, dormiu com criadas, deflorou meninas desamparadas, estuprou e até em éguas, mulas, cabras e porcas você enfiou este pinto nojento. Que a morte lhe traga sofrimentos, para pagar todo o mal que fez à humanidade! Podem jogar terra e vamos todos à sala comemorar, não há razão para tristezas e orações. Morreu tarde!
     Após o breve discurso, Dona Manuela se dirigiu para dentro de casa, amparada pelo bisneto, o Dr. José Luis da Cruz de Almeida Cunha, médico otorrinolaringologista, que morava na capital federal e viera em seu helicóptero para o enterro e atestar o óbito.
    O Dr. José Luis, Zezé para os familiares, não ficou para a festa de comemoração da morte do bisavô, pois precisava retornar à capital federal, para participar de um congresso de otorrinolaringologia, para o qual fora honrado com o convite de fazer a cerimônia de abertura ainda naquela noite. A Fazenda Nossa Senhora do Rosário não era distante da capital, portanto, em menos de uma hora chegaria para a cerimônia, com um ligeiro atraso, aliás, planejado, pois julgava que assim criaria um clima de expectativa. Ao contrário do bisavô, que não temia a morte, o bisneto sentia-se próximo dela. Antes de entrar no avião, colocava sal grosso nos bolsos e enfiava uma folha de arruda ou guiné na orelha esquerda; na hora de deitar-se media a pressão; auscultava o peito com estetoscópio, para ouvir o batimento cardíaco; engolia uma dúzia de comprimidos e colocava uma venda nos olhos, para aplacar a luminosidade da lâmpada e ia dormir com ela acesa, pois receava morrer no escuro, tendo o cuidado de verificar se o telefone estava funcionando, para o caso de chamar o Dr. Epaminondas, um médico amigo, especialista em cuidar de pacientes com síndrome de pânico e de doenças da alma.
      Durante o voo o dr. Zé refletia sobre a barafunda que fora a existência do bisavô. Não compartilhava o ódio descomunal de Dona Manuela, afinal, Chico da Cruz nunca deixou faltar nada aos filhos, ajudou netos e bisnetos a encontrar um rumo na vida. Ele mesmo se formara graças à ajuda dele, que pagara todas as despesas, que o pai negara, pois o queria padre. O pai contrariado jurou nunca mais conversar com o avô e só compareceu à cerimônia do enterro por causa da avó, balançando a cabeça afirmativamente quando ela rogara-lhe as pragas terríveis. Quanto ao filho, que ousara desobedecer-lhe, protegendo-se nas asas do bisavô, apenas depois de alguns anos concedera-lhe o perdão, atendendo ao pedido da esposa e do próprio Zé Luis. Lembrando o comportamento tresloucado do patriarca, esboçou um sorriso, que chamou a atenção do piloto: - O senhor acaba de sair do enterro do velho e me parece tranquilo. - Estou rindo de uns acontecimentos envolvendo meu bisavô e não há motivos para choro com a sua morte, ao contrário, é para comemorar, pois são raros os que chegam na idade dele. Sabe Paulo César, a existência é um enigma. Meu bisavô levou uma vida atabalhoada, rodeada de perigos, bebeu cachaça que nem bezerro e em sua autossuficiência não incomodou ninguém, nem na hora da morte. Dona Manuela sofreu na mão dele, é verdade, mas só agora revelou a extensão de sua raiva. Fico pensando como alguém consegue guardar a sete chaves tanto rancor por tanto tempo e não morrer. Acho que o ódio, assim como o amor, prolonga a vida. Eu não viverei tanto, porque não trago ódio, nem amor no coração, logo, tenho a morte como companheira. Apesar das precauções, tenho mais medo da terra do que suspenso nessa geringonça. Mas estava pensando no velho Chico da Cruz, lembrando alguns momentos engraçados, porque os eventos ocorridos com ele, mesmo trágicos, parecem comédias. A vida, meu caro Paulo, é uma tragicomédia.
      Meu bisavô ia a cavalo à cidade todas as quartas e sextas à tardinha, sempre bêbado. Respeitava os domingos, indo à missa com a família, não bebia, não blasfemava e não respondia às agressões verbais de minha bisavó. Voltava bêbado da cidade, montado em seu alazão. Este cavalo era o seu fiel companheiro, jamais o deixava na mão. Chico da Cruz vinha balançando o corpo, ora para a esquerda, ora para a direita, pra frente e pra trás. Muitas vezes acontecia de inclinar o corpo pra frente, deitando-se de bruços no pescoço do animal, cochilando. Chegava em casa são e salvo. Acontecia de ele cair e ficar por muito tempo no solo. O cavalo parava imediatamente e esperava o Chico da Cruz acordar. Ele ficou rico fabricando cachaça. No começo era um alambique imundo. Não chamava de cachaça ou aguardente, era arrebenta-peito, água-que-passarinho-não-bebe, sinhaninha, esquenta-por-dentro, água-benta, filha-de-senhor-de-engenho e outros nomes engraçadas. No processo de fermentação encontrava-se até rato morto no tanque. Somente a terceira geração introduziu modernas tecnologias, aumentou a produção e o patrimônio cresceu. Hoje a famosa Água-Benta do Chico da Cruz é exportada para a Europa e é a base do patrimônio da família. Açúcar e álcool vieram bem depois, mas o sucesso pertence a Água-Benta. Outro fato interessante é que o velho não se embebedava com a sua cachaça, pois ele acreditava que isso traria azar. Gostava era de pinga desdobrada, pinga ruim de boteco fuleiro, copo-sujo. Segundo as más línguas ele era um pervertido sexual, que emprenhou muitas meninas. Sinceramente não sei se é verdade. Alguns causos são verdadeiros, pois presenciei.
     Dr José Luis faz uma pausa, para observar as nuvens. Em seguida prossegue: - A mania que ele tinha de não amolar as pessoas, levou-o a usar um penico para as suas necessidades. Depois de urinar e defecar, isto já em idade avançada, ele o lavava, para beber água e até se alimentar. Bisavó Manuela ficava horrorizada e dizia "eita bicho porco". Não gostava de usar o sanitário. Fazia suas necessidades no penico ou no mato. Preferia banhar-se na cachoeira e na bica. Jamais quis saber de morar na cidade. Não foi fácil convencê-lo a se mudar para a nova sede da fazenda, queria ficar na casa antiga, sem conforto.
    - Mesmo depois de ter ficado rico, ele manteve a mania de defecar em penico? Perguntou o piloto, preparando-se para a aterrissagem.
     - Esta mania ele adquiriu quando ainda era jovem, lá pelos sessenta anos - respondeu o médico, sorrindo - e já estava numa situação econômica confortável. Depois ele jogou o velho penico de esmalte fora e mandou fabricar um sob medida, folheado a ouro. Eu o trouxe com medo de Dona Manuela sumir com ele. Fico me perguntando porque o velho Chico viveu tantos anos? Bebendo pinga como ele bebia... A minha bisavó, que nunca tomou uma dose de álcool, também é uma fortaleza! Ela chegará aos cem brevemente com uma vitalidade de fazer inveja a muitos jovens. Pariu vinte e seis filhos, assim, sem assistência médica adequada, aliás, os onze primeiros assistidos por parteiras, sem higiene, com ausência total de profilaxia. Poucos morreram e os que viveram cresceram com vitalidade.
O helicóptero pousou suavemente e o Dr. José Luis fez o sinal da cruz antes de pisar em terra firme.
     Na abertura do XXII Congresso de Otorrinolaringologia extrapolou o tempo programado com uma oratória recheada de latim de trinta e dois minutos a mais, irritando muitos presentes, em especial aos que vão a congressos e seminários apenas na abertura, para cair de boca sobre o bufê. Por motivos antagônicos, todos ficaram felizes com o fim da intervenção do Dr. José Luis, ovacionado pelo público. Este mesmo público, à exceção do Dr. Epaminondas Hipócrates Soares, médico especializado no tratamento de pessoas com a síndrome de pânico, transtorno obsessivo compulsivo e transtorno afetivo bipolar, não percebeu a saída silenciosa do Dr. José Luis. Epaminondas o seguia à distância com o olhar e o viu entrar no carro, deixando o local do evento. Dr. Hipócrates retornou ao auditório, pensando se deveria ligar para o amigo, ele, que muitas vezes fizera o papel de conselheiro e psicólogo de Zé Luis, que nos últimos tempos dizia ver a morte como companheira. Pressentia a sua presença. Nestas horas sentia arrepios pelo corpo, o coração disparava. - Hipócrates, meu amigo, eu me comunico com ela. Ah, sinto frio, entro em transe e em êxtase - contava, emocionado, ao amigo. O Dr. Epaminondas diagnosticava ansiedade, angústia, taquicardia, pró-lapso da válvula mitral e, ultimamente, insanidade mental, mas esse diagnóstico guardava para si. Aconselhava o amigo a se casar, arranjar uma companheira, a construir uma família, mas Zé Luis retrucava, dizendo que era um ser solitário e que só se casaria ao encontrar sua alma gêmea e que o amigo não se preocupasse, pois o que tinha de ser será, completava em tom premonitório: A minha hora vai chegar. Repetia esta frase, quando desejava encerrar a polêmica. Ao se lembrar disso, Dr. Epaminondas decidiu esquecer o amigo e foi participar do coquetel.
     Enquanto isso o Dr. José Luis chegava em casa. Lentamente subiu a longa escada, que conduzia ao seu quarto. Colocou o pijama negro de cetim, que comprara recentemente, para ser usado em uma ocasião especial. Nessa noite decidira romper o medo e sentou-se na cadeira de vime, com as luzes apagadas. Minutos depois, sentido-se sonolento, entrou em estado de vigília. Viu o rosto de Chico da Cruz na cova e o cachorro ganindo de tristeza, viu a alma do bisavô saindo do corpo e se esvaindo. Em seguida um barulho de passos ritmados na escada, que ele sabia quem era. Sim, era ela chegando conforme previra. Epaminondas não se surpreendeu de tê-la, finalmente encontrado. Sua esplêndida alma gêmea. Em êxtase contava e cantava em silêncio os passos suaves subindo a escada:
 
Ouço passos na escada...
É noite e há silêncio.
Fico quieto ouvindo os passos ritmados
subindo a escada.
É uma mulher que vem
com sapatos de salto ato.

No silêncio noturno meu coração
bate batidas aceleradas.
Na noite silenciosa estou só.
A vela bruxuleia sobre a mesa
em cúmplice solidão.

Ouço passos na escada,
prenúncio de minha
derradeira noite de espera...
É ela que vem para pôr fim
aos meus dias solitários...

Reconheço seus passos decididos.
Vem com seu vestido negro
balançando os quadris
com uma expressão de amor.

Espero a campainha tocar.
Sei que é ela chegando
com seus cabelos longos
ligeiramente encaracolados
com um sorriso suave
para me acalmar.

Continuo paralisado
atendo aos leves passos
subindo a escada
na noite silenciosa e fria.

A minha hora se aproxima
mas os passos dela subindo a escada
parecem não ter fim.
Sei que vem com lábios de carmim
olhos meigos
elegante e sedutora.
Deixarei que ela me conduza
ao quarto e me coloque
sobre a cama com candura.

Meus tristes dias logo logo
terão fim
pois ouço o toque de seus passos
ecoando na escada.
É ela finalmente vindo a mim
e quando ela me tocar
meu coração deixará de bater descompassado.
Quando ela pousar seus doces lábios
sobre os meus
meu coração silenciará.

É ela sim...
Reconheço bem seus passos na escada.
É ela que vem
meu pássaro noturno.


Imagem: Engenho Século XVIII - Cel. Xavier Chaves-MG


Esta crônica está em meu livro Filhos da Terra - 2009 - Esgotado.

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