“PROFESSORA, SABIA QUE A COMIDA DOS PRESOS É MELHOR QUE A NOSSA?”

Já faz uns três ou quatro anos. Eu estava com um grupo de alunos realizando um projeto que intitulei “A linguagem visual dos espaços escolares”. O objetivo era conter a evasão escolar, a partir de se trabalhar a autoestima dos alunos e a ideia da vivência do pertencimento ao espaço escolar, com o saber fazer. Aproveitei um dos conteúdos de minha disciplina para trabalhar transcendendo a sala de aula, a princípio, ainda dentro dos muros da escolar.

O primeiro espaço, cedido pela escola, para começar o projeto, foi a cantina da escola. Pedi então, aos alunos que pensassem em imagens que expressassem aquele lugar e sua relação com os mesmos. E logo, foram chegando as propostas. Sob minhas análises e orientações, e com a concordância de todos, foi escolhido desenhar balões de pensamentos e dentro deles a ideia imagética de cada aluno, sobre o que desejava como merenda. E inúmeros balões iam sendo feitos e preenchidos. Tinha de tudo nos balões: picolés, sorvetes, frutas, bolos, pudins, macarronada, bombons regionais, pães; sanduíches, sucos, frango ao forno, peixe assado e tantas outras comidas deliciosas.

No primeiro dia de trabalhos, seguimos até a hora do recreio. Eu nunca tinha estado nesse momento, ali, e me surpreendi com o que presenciei. A impressão que tive é que estava num desses países assolados pela fome. Crianças se acotovelavam, quase se pisoteavam na ânsia de comerem alguma coisa. Fiquei assustada com a realidade de meus alunos que, até então, desconhecia. Descobri que muitos vão sem tomar nem o café da manhã e a merenda escolar é sua primeira refeição do dia. Por isso aquele comportamento.

Noutro dia, os alunos e eu continuávamos o projeto. Eu estava ajudando a pintar, quando um aluno de uns seis ou sete anos se aproximou e perguntou-me: “Tia, por que a merenda boa só está pintada na parede?” Fiquei estarrecida. Aquela criança esperava de mim uma resposta e eu como professora deveria ter todas as respostas ou quase todas para uma criança daquela idade. Como não sabia, optei pela sinceridade e disse: “Não sei, querido.”. Ele continuou: “Seria tão bom se o que está pintado fosse verdade!”. Aquilo doeu-me na alma. Mas aquelas palavras não foram as únicas que me entristeceram. Em outra oportunidade, quando continuávamos a grafitagem, uma aluna de uns dez anos, se aproximou de mim e disse: “Professora, sabia que a comida dos presos é melhor que a nossa merenda?”. Aquilo foi estarrecedor. Como aquela criança sabia disso e eu não? Naquele momento ela me ensinava e eu aprendia. Mas a situação ainda era mais grave: aquela aluna sabia que investiam mais em quem comete crimes do que nos que estudam. Como eu iria convencê-la do contrário? O que ela sabia era mais forte que qualquer teoria: era sua vivência. Nenhuma palavra minha a faria pensar diferente. Creio que a dignidade humana precisa ser preservada em todos os lugares (presídios, escolas, locais públicos, etc). No entanto, o fato é que toda essa realidade avassaladora reflete na educação brasileira. Muitas vezes, nós professores, não conseguimos dar nem as primeiras aulas com eficácia, e muito menos as últimas. As primeiras não são possíveis, porque o único pensamento da maioria dos alunos é na merenda que vão deliciar, e pra isso ficam contando os minutos; as últimas são ainda mais impossíveis, visto que se a merenda não existe ou se é precária e não as alimenta, quando dá onze horas os alunos tomam a decisão de ir embora, sem pedir qualquer autorização. A única autorização que obedecem é a ordem do próprio organismo a procura de alimento. Eu não gosto de contar o que faço em termos de caridade ou solidariedade, mas já tive que comprar lanche, várias vezes, para que meus alunos pudessem se manter em sala de aula até as doze horas e quinze minutos. Eu defendo uma educação integral, em que o meu aluno chegue em sua escola e tome o café da manhã e possa estar fisicamente preparado para prestar atenção nas aulas e estudar de verdade; depois, um bom lanche, mais aulas e um ótimo almoço; descanso e atividades diversificadas; e no final do dia, um jantar. Tudo num ambiente todo equipado com o que há de melhor, com uma estrutura que encante crianças e jovens só de olhar. Eu sonho com o dia em que a educação seja o foco do cuidado de um estado. E isso não seria caridade. Nós pagamos isso com nossos impostos. Mas enquanto isso, apenas (chove) “interminavelmente na sala de aula”... Chove também nas pinturas das paredes que retratam mudas as delícias imaginadas pelos alunos, que vão com o tempo ficando desbotadas, mas essas delícias continuam apenas na parede, só na parede e mais nada...