A Vaidade do Mendigo

O tempo de Belmiro Witt era sempre curto, imagine três empregos de professor. Na Federal, no CEFET, na PUCPR, além de outras atividades, entre elas dono de casa. Estava sempre chegando ou saindo, ainda assim nossa conversa rendia.

Repertório extenso. Ciência, política, arte, futebol, banalidades da vida. E claro, a Matemática, sua especialidade. Tinha por hábito preencher palavras cruzadas enquanto falava. Por vezes o assunto era pautado pelos quadradinhos.

Um desleixado completo. Roupa puída, longa barba esfiapada, sandália tosca.

Nossa amizade permitia intimidade.

- Camisa sem botão, Belmiro? Que falta faz uma mulher na vida do homem...

- O que me faz falta é o dinheiro!

Certa vez contou a estória do trote aplicado em suas turmas na Federal. Era assim: no primeiro dia de aula um veterano bem vestido chegava discursando bonito, citando livros a serem adquiridos, ditando conteúdo que os alunos anotavam submissos. Pra finalizar, o falso docente aplicava a troça propriamente dita, indagando despretensioso: já sabem do mendigo?

Havia um maltrapilho perambulando pelo Centro Politécnico. Enganava-se quem o julgasse errante. Sujeito ardiloso, sempre na espreita pra usurpar classe desavisada. O andante era vaidoso e tinha tara: dar aula de matemática. Pra isso carregava giz. Descrevia o maluco, é barbudo e careca, recentemente invadiu sala aberta, “deu aula” numa pós. Pra que todos soubessem a quem evitar, projetava foto do mal trajado em perfil. Calva brilhante, cigarrão na boca, pochete inseparável, caixa de giz na mão.

- Vejam que soberbo! Imaginem as consequências. Dramatizava o alerta, insinuando em gestos, mau cheiro insuportável. Insistia: cuidado, o elemento tem predicado. Se derem mole, terão dificuldades. Ele realmente sabe matemática, sua vaidade é demonstrar teoremas. Não se deixem enganar por lista de chamada em papel timbrado. Ao que parece, também rouba documento.

Pois o mendigo em questão era o próprio Belmiro que aprovava a encenação, sobretudo o desfecho daquela farsa, quando o ânimo dos alunos obstruindo lhe a passagem se elevava em níveis de quase agressão, e outro personagem aparecia.

“Grande professor Belmiro, meu guru! Ilustre filho do Rio Negro! Pelo visto os novatos caíram direitinho no discurso preconceituoso que espalha injúrias sobre o nosso mestre! Tolinhos, se guiando pela aparência! Aposto, não perceberam que o falso professor está zombando deles da janela aqui ao lado. Nem que marcou prova num domingo!”

Às vezes tentava alertá-lo de algum excesso. Já disse, nossa amizade permitia intromissão. Recíproca.

- Belmiro, já faz uma semana que você está na base do pastel seco às três da tarde.

- Primeiro que não deu tempo, segundo não tenho fome suficiente pra justificar um almoço, terceiro e mais importante, não me deixam entrar com cerveja aqui dentro.

Certo dia inovou. Exibiu a coxinha numa mão, refrigerante na outra. Cigarro ainda da boca, falou.

- Resolvi variar, hoje fiz um “combo”.

Noutra ocasião alguém levemente familiar entrou na sala dos professores. Só quando se explicou, descobri ser o Belmiro. Barba aparada, envergando terno novo.

- Vou ser homenageado, por isso estou “internado”...

Notas

1. Federal: Universidade Federal do Paraná (UFPR)

2. CEFET: Centro Federal de Educação Tecnológica (atual UTFPR)

3. PUCPR: Pontifícia Universidade Católica do Paraná

4. “combo”: termo em voga atualmente, significando combinado - conjunto de produtos ou serviços.

5. “internado”: dentro do terno.