As Malditas Mãos Molhadas

Meu pés de pato fazem com que meus calçados rasguem. Todos, sem exceção. A minha bota de serviço que, quando nova não entrava, agora está rasgada de tudo quanto é jeito. Com a chuva que tomei hoje cedo, a meia empapou e ficou nojenta e a única disponível para substituí-la deixa o dedão pra fora. Então o dedão do meu pé direito está pra fora.

Eu sinto que estou arqueando em excesso nos últimos meses. Um incômodo incessante nas costas. Eu me achava velho aos 24 sem saber que aos 30 a coisa pioraria. Azar filha da puta ficar sem moto no dia que resolveu chover um milhão de milímetros. É essa medida mesmo?

Eu achava que era um autômato carimbando notas fiscais, sem saber que polir carros faria a coisa ficar pior. Em dias chuvosos e/ou úmidos tudo que já é ruim fica ruim demais: nada seca, as mão sempre úmidas, a massa de polir empapando toda hora na boina, a falta de abrasão fazendo com que eu me demore mais do que o necessário nessas porras.

Eu achava que era vantagem fazer trabalhos manuais e deixar o célebro cérebro cébrebro boiando no lodaçal de quimeras irrealizáveis, mas aí vi que vida não é só isso: a vida é desejar ser e ter. E pagar contas. Para todo o sempre amém. Agora meu cérebro não boia, não posso deixar que boie: trabalho com uma voz também autômata cantando as normas da corregedoria geral da Justiça nos meus ouvidos, artigo por artigo, inciso por inciso, alínea por alínea; eu vou tropicando em copos de plástico que jogam à minha volta nessa dança proletária maluca em volta de um capô que demorou duas semanas pra chegar da França e que custou o dobro do meu salário com essa máquina gritando na minha cabeça fazendo mil e quatrocentas rotações por minuto pesando cinco quilos.

Tem esse velho que dá o sufixo do sobrenome ao nome da empresa. Anda torto, podre de rico, fica rodeando, para e fica me encarando com cara de peixe morto dentro de um aquário de água suja. Eu sabia que ele pararia ali e ficaria me olhando e olhando pro chão, pro meio do pátio, onde tem duas dúzias de copos de plástico jogados no chão, que juntei daqueles que eu tropeçava e joguei lá, no meio do caminho, para os donos da empresa e clientes e peritos verem como somos porcos, uns porquinhos analfabetos e bem sujos.

- Viu - ele diz - junta esses copos aí.

- Eu não vou juntar merda nenhuma.

- Ué, como não? Como eles vieram parar aqui?!

- Eu joguei aí...

- E não vai juntar por quê?

- Ali, aquele saco de lixo ali bem abaixo do bebedouro. Botei aquela porra lá. Ninguém joga os copos lá. Deixam por aí. O vento joga tudo à minha volta. Eu fico tropeçando neles. Eu tenho agonia de mãos molhadas, de coisas caindo das minhas mãos e de lixo que não produzi atravancando meu caminho. Botei aí pra chamar sua atenção e pra ver se você chama a atenção dessa cambada de filha da puta porco aí.

Ele parece não acreditar no desaforo, roda nos calcanhares e desaparece nos outros barracões. Aí vem o cara que dá o prefixo do sobrenome ao nome da empresa e chama todo mundo inclusive eu e manda todo mundo recolher os copos.

- Eu não vou recolher porra nenhuma, eu já falei.

As horas passam mas não passam. Chove, o céu abre, azula, se acinzenta, pesa, fica leve, os quero-quero passam em trio gritando e eu tento não esmagar os insetos que cismam em pousar no capô onde trabalho.

Café. Dois ou três litros de café. Quase todos fumam. Param pra fumar, como se fossem portadores de necessidades especiais, com privilégios quejandos. Tem o que mora com a mulher com quem casou há 20 anos, mas que é separado há 5; tem o que forrou o paiol da amiga da mulher; tem o que tentou matar a mulher e o irmão que o haviam traído só que voltou com a mulher só que ela botou ele pra fora de casa depois de reaver casa móveis toda uma estabilidade e tal. Enchem os copinhos de café, acendem os cigarros e falam sobre pegar mulher onde tento vencer o capô de ouro. Eu paro de trabalhar, atravesso o pátio, cruzo os braços, sento no chão. Vem o velho do sufixo, para na minha frente, fica me olhando.

- Pois não?

- Tá passando mal?

- Com sono, só.

- Parou de trabalhar por quê?

- Esperando eles terminarem o cigarro.

- Porra, rapaziada!

As. Horas. Aquele ranço na boca. Nenhum docinho. Escovar os dentes.

Escovando os dentes. O Parachutes do Coldplay salvo todo num arquivo só se repetindo pela terceira vez seguida e ininterrupta.

O excomungado tenta mais um diálogo comigo.

- Mano, vai fumar essa porra lá do outro lado.

Parece burro.

Caralho, eu preciso responder as pessoas no facebook.

- De novo escovando os dentes.

- Finge que eu tô fumando.

Shoot a apple off my head.

Dor nas costas, sono, mãos molhadas.

As malditas mãos molhadas o dia inteiro.

Esfregando elas nas calças o dia inteiro.

20/05/2017

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 20/05/2017
Reeditado em 20/05/2017
Código do texto: T6003920
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