Ferro e fogo

Assim falou o Mutxipissi quando descobriu que 2014 era um tempo sem Deus e que a Matola não constava da lista das zonas selecionadas pelo eterno legislador:

"Alguns moçambicanos já ficaram cegos ao ponto de confundir a pele dos seus próprios irmãos com panos amarfanhados. Em Maputo ao tentares sobressair honestamente podes abraçar o teu funeral.

Agora já é arriscado dormir na própria casa. O mais seguro é dormir na rua, ou melhor, tresnoitar como peregrino à procura duma salvação Divina, com a fé toda fragmentada já que a justiça dos homens jamais se materializa. Aqui podes dormir enrugado e acordares todo brunido ( bem engomadinho), se não tiveres a sorte de ser esquartejado ou trucidado.

O povo caiu na descrença e ficou insurrecto. fez agremiações e procedeu a patrulhas. Porém, o mais armado é que vence (armado até com ferro de engomar), pois o inimigo é invisível e metamórfico. Os cidadãos passam noites em branco e fazem conflagrações nas ruas e acabam cremando irmãos inocentes, pois os homens de ferro são inatingíveis.

Que homens patifes, cavernosos e misantrópicos! Desprovidos de expessura psicológica e sentimental, roubam, semeiam momentos funerários e eternizam a consternação dos que penhoraram as suas vidas num suicídio laboral em troca do capital. Se é que era fama de que estavam a procura, já têm em demasia, pois já assinamos um “contrato social” e abdicamos dos sonhos porque estamos todos em desespero. Aqui a paz é uma lenda. Nossas noites são infernais, só nos resta o comentário. Eles são o objecto de debates em qualquer instituição. Já conseguiram desestabilizar toda província. O pior é que a policia denota incapacidade para desmantelar essa corja de homicidas desalmados.

A primeira oração do dia já não se dirige a Deus, porque o cidadão sente-se obrigado a agradecer constantemente aos senhores “engomadores de corpos” por não terem passado pela sua zona ainda. Mas o que se pode fazer? Enquanto ainda formos moçambicanos estaremos sujeitos a este calvário. Coabitaremos com os nossos predadores, mesmo com o medo e a angústia a sufocar-nos.

Esse não é o único” stressante” que nos tenta fulminar a consciência e nos tornar insanos. Que subsista a esperança e se multiplique a paciência! Há sempre uma luz no fundo do precipício, quando o tempo der a sua última palavra o mal vai sucumbir, as verdades e inverdades vão fundir-se e parir a justiça, veículo da felicidade."

Com razão ou sem ela, mais tarde a polícia desmentiu a ocorrência dos crimes e assim as palavras do Mutxipissi foram desconsideradas. A polícia dizia que aquilo era uma patológica utopia dos cidadãos, uma perturbação mental do tipo epidêmico causada pelo medo do destino. Os que apareciam no hospital com nádegas estufadas, dizendo que tinham sido enrabados e engomados sofriam de idiotia ou amência. Os gritos noturnos que se ouviam, sempre que o dia se esvaecesse, eram produto de uma psicose social. O povo precisava ver um psiquiatra.

Ilídio Pedro ( in As viagens do diabo num tempo sem Deus)

Mutxipisi
Enviado por Mutxipisi em 20/05/2017
Código do texto: T6004028
Classificação de conteúdo: seguro