Amor Virtual
Até que enfim, achei alguém que está a fim de mim. Antes não era assim.
Convidado ou penetra estava em toda a festa.
Olhos de pastar, e o pasto a esperar que chegasse para comer a mais linda flor que acabou de florescer.
Desfolhava pétala por pétala, depois atacava as sementes, que se entregavam contentes, achando que
tinham encontrado e príncipe encantado.
Santa ingenuidade, quanta maldade? Não era um encontro de almas com alguma afinidade, alguma
fagulha de verdade. Era mesmo um encontro do amor quase celestial, com o amor infernal.
Margarida desfolhada, caule só, jogada ao chão, ao sol, ao vento, ao relento.
Sem olhar para trás, seguia à procura de outra festa, de outro pasto para me fartar.
Nem percebia que o tempo andava a me rodear, e ria porque sabia que andava a decretar a hora da festa
acabar.
Andarilho enredado em todo o tipo de sarilho, não criei raízes, o chão onde me abrigo é chão dos outros,
não meu.
Filhos, família, tudo soava mentira. Vou morrer sem saber se era mentira ou verdade, formei-me na
escola da falsidade.
O tempo tinha razão, sozinho, sem nada a que possa chamar de meu.
Aquele corpo sarado, foi ficando deformado. O pescoço enrugado, acho que começavam ali a aparecer
os sinais de envelhecer.
Os olhos, antes saltados, agora encubados, no lugar daquele olhar vivo, penetrante, estão as rugas a
dizer: és agora um olhar distante.
O tempo sabia que eu ia ter tempo para ver o que andei a fazer.
Causei muita dor, deixei para trás muita gente a sofrer. Lágrimas e ais misturadas com as minhas
pegadas.
Até pode ser que tenha deixado para trás muitos filhos sem pais.
Mentiroso é mentiroso , uma brecha e o mentiroso ataca outra vez.
- Que prazer te conhecer!  Espera um pouco o teclado do outro lado.
- Prazer por quê? Nem sei porque respondi. Entrei nesta sala de bate papo para encontrar o gato mais
lindo com quem ando a namorar.
- gato por gato, mais gato sou eu.
- Ah! Isso eu pago para ver.
-Quantos anos você tem? Lembrou-se daquela primavera, que um dia foi, mas já era.
Ai! Vai começar tudo outra vez. Um.. dois.. três...
Fingia como ninguém, aprendeu com sua tia, um pouco com sua mãe, mas a sua professora foi mesmo
aquela Marcela – “ Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”( Memórias Póstumas
de Bras Cubas, Machado de Assis).
Ai que delícia de lambisgóia, Marcela... quero ser como ela. Na arte de mentir, professora, em fingir,
doutora.
-Corpo de dezoito, cabeça de oito.
- Era isso que eu andava a procurar, te fisguei, não vou mais te soltar.
- Devagar, lembra? Eu tenho namorado.
- Já era, coitado!
Namorado, namorada nenhum deles tinha nada. O que tinham em comum era a farsa a rir: lá estão eles
de novo a mentir. Só rindo, não aprendem.
Mentiroso, mentirosa, o seu destino é mentir, a mentirada que saia da algibeira, tão natural, só asneira.
Não se cansavam de mentir.
Mentiam a idade, o peso, a altura, a cor dos olhos. Cada um acreditava nas mentiras que o outro contava.
Se ali estivesse um gato, uma gata de verdade ia logo perceber: gato nada, os gatos de agora são outra
história. Os dois mandavam sinais de que  não tinham nada a ver com um gato para valer.
Tão empolgados andavam nisto de enganar que nem percebiam que mentiam.
Ou não mentiam? Deram de andar para trás: cada um dizia o que se comia como prato do dia.
Saiu aquela pergunta, à época uma ousadia.
- És virgem?
Sem muita alegria ela respondeu:
-Toda a mulher foi virgem um dia.
Já um gato de hoje diria: quero ficar contigo, quero-te conhecer mais de perto. Isso se fosse um gato,
educado, esperto.
Outro mais atrevido, como quem fala ouvido, diria: quero afogar o meu ganso no teu rio.
E continuaram na arte de enganar, matavam saudades do tempo em que tudo aquilo eram verdades. Os
mesmos desejos, pediam os mesmos beijos. Era verdade, só não percebiam que estavam fora da
realidade. Com as mentiras prestavam culto ao amor antigo.
Mas nem aqui dava para confiar, os dois eram a versão da exceção. Existir era mentir.
Cada mentira escondia a verdade que na alma lhe ia.
Outros tempos, outras formas de aqui estar.
Ele, um jogador de sinuca, à época um palavrão, ninguém queria ter na família um jogador de sinuca,
Deixou escapar:
- Adoro jogar a vida fora, jogo sinuca, como tantas outras, mais uma arapuca.
- Ah, Entendi! Conhecia bem outras arapucas, caiu em muitas e fez outros cair junto, assim como um
defunto que não gosta de ser enterrado sozinho, leva consigo um anjinho.
Uma boa lambisgoia, jogou muitos ao mar, depois de lhe tirar até a boia. Nem se deu conta de que jogar
sinuca agora é outra história, Uma inocente distração, perto das drogas, nada que jogue um jovem ao
chão.
-Estamos a nos conhecer melhor, eu também gosto de dançar e deixou escapar mais esta: como quem
está a assobiar “Quero buzinar meu calhambeque, bi-bi” .
- Além de jogar sinuca, de dançar e de imitar o Rei o que mais gosta de fazer? Gosta de praia?
- Adoro, aproveito para te convidar para um passeio pelas curvas da estrada de Santos .
- Quem sabe!.. Estou começando a gostar do nosso papo legal.
- Agora vamos para um papo sério: trabalho.
- Vamos combinar uma coisa: não vamos falar de trabalho nesse quesito, tu te calas, eu me calo, não falo.
- Concordo: lambisgoia que se preza ao trabalho dá um tiro ou despreza, nem se empenhou em fazer
aquele curso para rainha do lar, lá no fundo já sabia que não era de casar.
- Oba! Melhorou. A praga bíblica com ele não pegou: não se preparou para ser provedor do lar, nunca
pensou em se casar, de criança queria distância.
O teclado do outro lado mandou risos: total aceitação, 100% de confirmação.
-Oba, estamos nos entendendo muito bem, quero te conhecer.
-Pode ser , acho que encontrei o gato que passei a minha vida a procurar, deixou escapar.
- Valeu! Está vendo que gato por gato mais gato sou eu. Vamos continuar a teclar até decidirmos deixar o
teclado de lado, quero te ver do outro lado da telinha.
Ali estavam dois exemplares da vadiagem de outrora, agora.
O progresso colocou-os frente a frente numa situação muito conveniente.
Amor virtual era a utopia, o sonho que foi um dia. Ah! Agora era verdade, acontecia.
Dois mentirosos a mentir à vontade, sem o olhar, sem rugas na testa para os denunciar.
E continuaram por meses a fio a desfiar mentiras. Mentiras, mentiras de outrora, caíram de moda,
evoluíram, não para melhor, só para pior: da sinuca às drogas, da lambisgoia à Piriguete, ali estavam, como  sempre,  por fora, distantes da realidade de outrora e de agora.
- Então, acho que está na hora de nos conhecermos pessoalmente.
- Concordo, também te quero ver. Marcaram um encontro, o lugar: uma balada apagada, que antes fervia
quando chegava a rapaziada. Agora, ultrapassada.
À hora marcada lá estavam os dois, não para um encontro, só para ver de longe, quem era o gato, quem
era a gata. Não havia gato nenhum, muito menos gata. Viu um senhor, meio desengonçado, olhar
atrapalhado, bem vestido, mal vestido: coisa assim do passado.
Ele por sua vez procurava por uma gata assanhada: saia justinha, um palmo só, pernas à mostra; um
corpetinho tão pequenino , seios de fora.
Mas o que via era uma senhora, da sua idade, tirou dela trinta anos, ali estava o broto de quem o Roberto Carlos falava.
No bar antigo, só os dois e o velho amigo. Ninguém se conhecia, mas certamente nas jovens tardes de
domingo , ali viveram muitas alegrias. “ Velhos tempos, Belos Dias”.
Não se aproximaram, evitaram-se olhar, não havia o que duvidar, ali estavam dois mentirosos cada um
tentando ao outro enganar. Não vou estragar a festa, o amor virtual é o que nos resta.
Já me acostumei a ser só, gosto de viver sozinha, vamos continuar com este amor virtual.
Deitar e rolar em cima.
Ele na cama dele, eu na minha.
Lita Moniz