Rio Que Corre Doce

Neste exato momento os grilos estão a cantar lá fora, tão comum como o entardecer. A sensação que me acomete é de pertencimento, eu sou filho do canto dos bichos na noite clara, lá no fundo do vale nesse mar de serras. Sem mais nem menos, esse sou eu e tantos outros, e tontos outros se você me permite, por aqueles que esqueceram a sua identidade, não saem mais com o RG e são qualquer coisa exceto o que eu sou.

Os meus olhos recaem sobre todos esses autointitulados órfãos do vale do rio doce e não me resta nada além de pena, talvez um dia se encontrem, esse vale é grande demais pra tanta gente.

De onde eu vim a maior riqueza que existe não é o capital, apesar de ter sido levado a crer inúmeras vezes do contrário, precisei da ajuda dos ponteiros e de algumas centenas de quilômetros para saber aonde estava o ouro. E me enganam todas essas crianças, fingindo denunciar aquilo que todo salário não traz, não apontam, não denunciam, são.

Agora estou a percorrer as ruas, terra onde hoje é asfalto, estou descalço e meus pés tocam história e nada mais, aqui nunca existiu heróis, a não ser aqueles que cada um o é por sustentar o seu nome redentor. Impecáveis, figuram as relações cotidianas de uma vida simples, mas intensa, por vezes trágicas, mas que não se passou um dia sem riso. Na janela a menina jovem me acena e promete um amor que não é nosso, estou feliz. A mãe na cozinha e a família em seus ombros, aqui se trava uma guerra, sua proporção não é mundial, seu único intuito é formar um exército de pessoas de sorriso fácil, corajosas e dispostas. As Mães do Divino e seu imaculado amor.

Chego no ribeirão que corre manso e certeiro, por ele não passa grandes embarcações, para além dele todo o mistério que não nos interessa, no máximo uma pinguela cruza e passa quem pode, quem não pode, está em paz.