1995

Bebê de proveta. Isso ecoava na rua de casa, os vizinhos cochichavam, nós crianças questionávamos a todos e ninguém respondia. Na minha cabeça era um bebê de vidro, porque do alto de meus 7 anos, proveta era algo de vidro. Só podia ser. Ao mesmo tempo em que eu desejava muito conhecer o famoso nenê, morria de medo de ter medo dele. Seria muito feio se eu tivesse medo de um bebê.

Eu havia acabado de aprender a andar de bicicleta e minha pista de treino incluía a frente da casa da Bete, a mãe. Eu passava sempre de cabeça baixa, as vezes dava no máximo uma espiada de canto de olho. Tinha meu clubinho de mães de bonecas e troquei o nome da minha filhinha de Lulu para o nome da nova moradora da rua, que ainda não conhecíamos, Letícia. Era fácil cuidar de uma boneca com a maior parte do corpo feita de pano e espuma, mas como seria ter uma filhinha que podia quebrar se não segurasse direito?

Com o tempo o burburinho do nascimento havia passado. Não lembro muito bem, mas com certeza nós havíamos deixado pra lá a novidade, até que o dia chegou. Perto da casa da Bete havia uma mangueira bem grande onde juntávamos a pirralhada embaixo pra contar mentiras. A minha mentira favorita era de que eu tocava nas nuvens quando viajava de avião. Sério. Eu contava isso pra todo mundo e ficava chateada demais quando diziam que não era verdade. No meio daquele amontoado de crianças alguém apontou pra frente: era a Bete com sua filha no colo. A Letícia, de verdade, era branquinha e tinha uma faixa vermelha na cabeça careca e ela não era de vidro nem de espuma, era de pele enrugadinha e ossinhos de verdade. Ficamos bobos brincando com os dedinhos dela, querendo passar a mão, pegar no colo. A mãe quase ficou doida.

A partir daí nosso compromisso diário inadiável era ir ao portão da Bete pra ver a Letícia. Contávamos tudo pra ela sobre nossas histórias de bicicleta, sobre a escola e sobre nossas bonecas. Desconfio que ela não entendia, mas nunca reclamou.

Tudo parecia ter voltado ao normal até o dia que soubemos do nascimento de outra bebê que não era de vidro, mas segundo os adultos, tinha o cabelo vermelho. Como alguém poderia nascer com cabelo de fogo?

Suelen Lucena
Enviado por Suelen Lucena em 27/06/2017
Código do texto: T6039145
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