E as vidas se nutrem de vontades.

E os dias vão se tornando líquidos, nem sempre límpidos, nem sempre ao som de violinos ou mesmo clarinetas. Eles vão, simplesmente. No meio das tempestades, às vezes o tempo corre um tanto tenso ou emburrado em meio aos outonos da existência. De qualquer existência. Outros dias se vão com as alegrias da primavera, na suavidade musical do canto de todos os pássaros ... mas teimam em acaba um dia.

Há de se fazer maciez no tempo que passa inexoravelmente. Porque ele é ligeiro como os ventos que, às vezes, assombram.

E em mais um domingo fomos visitar a tia na casa de repouso. Alguns sabiás pousavam e certamente ainda pousam naquelas árvores que ornamentam um espaço lindo e aconchegante e que resistem à opressão cinza do cimento e do asfalto. Como se, de compaixão, cantassem “vou voltar, sei que ainda vou voltar, para o meu lugar, foi lá, é ainda lá, que eu hei de ouvir cantar uma sabiá”...

Mulheres passivamente olhando aquele recanto teimosamente melodioso e, algumas, deixando escapar um brilho no olhar da saudade. Não se trata de contemplação. Apenas olhavam a paisagem com semblantes distantes e de breve despedida. Mas não sabem se saudades do que não viveram, dos amores que se frustraram, dos sonhos que se esvaíram ao sabor do vento.

Homens também olhavam, mas ainda tentando uma energia de permanência num mundo que se evapora obediente às horas e à qualquer estação.

As horas se tornam longas, com um gosto lento de eternidade. O ruído dos automóveis não chega ali. Também é domingo e milhares de homens e mulheres preferem algum distanciamento dos seus volantes que levam... para onde, mesmo?

As dúvidas permanecem. As saudades são soberanas sobre os sentimentos que não vingaram. Elas se remexem nos corações, alguns empedernidos, outros esfolados pelas unhas lascadas e compridas da falta de compaixão nem sei de quem.

Na outra esquina, num banco no ponto de ônibus, um senhor, sem identidade, sem chão, sem rumo, sorria a esmo na sua negritude, esperando que alguém o observasse. Tive constrangimento em fixar-lhe o olhar enquanto parávamos no semáforo. Sorriu prá mim e se adiantou a um eventual julgamento meu : “não é só pinga, não. Eu tenho o pão também”, retirando e me mostrando de um saco de papel um pão velho, e se benzendo, sorridente e confiante, com o mesmo na mão direita.

Um retrato 2X2 de uma São Paulo que necessita urgentemente de um sol, uma luz macia e branda, alcançando o cerne dos corações. É uma São Paulo do desespero, da intemperança, de uma insanidade crônica que transborda os limites de cada peito. Uma cidade que deseja mais terra, mais sorriso, muito mais sonhos e esperanças, espaços para a contemplação, uma grande forma de oração. Uma cidade com pessoas que necessitam de mais abraços esfuziantes, verdadeiros, quentes e iluminados. Pessoas que precisam mais que trabalhar, trabalhar, trabalhar muito, sempre, cada vez mais... apenas para comer. São pessoas que precisam da plenitude e do encontro com a divina arte de partilhar sentimentos e emoções.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 25/09/2017
Código do texto: T6124239
Classificação de conteúdo: seguro