Lixo?
Uma panfletagem desenfreada sempre acontece nas nossas cidades. Anunciam empréstimos financeiros, oportunidades de cursos, de vagas de trabalho, além de convites aos milagres do empreendedorismo. Apresentam-se como alternativa ao cidadão, desempregado ou não, para que possa enfrentar a crise e competir com eficiência nos difíceis tempos de hoje. Estas propagandas infestam as áreas centrais, em meio aos pedestres nas esquinas e aos motoristas nos semáforos. Basta uma pequena volta por estes locais que conseguimos ser contemplados com, pelo menos, uns cinco panfletos diferentes.
A preocupação em não poluir as ruas, infelizmente, não é de todos. E lá estava eu, naquela tarde, bem no olho do furacão e, claro, já com papéis nas mãos, quando, tendo lido alguns, procurava uma lixeira para descartá-los. Não encontrei nenhuma por perto e enquanto pensava no que ainda tinha para resolver por ali, deparei-me com uma caixa de papelão de tamanho razoável, próxima a uma esquina. Rapidamente, tive certeza de que se tratava da lixeira que eu precisava, ainda que parecesse improvisada. Imediatamente amassei os panfletos e joguei-os na caixa. Foi quando ouvi um brado assustador:
- Que falta de respeito! O senhor está achando que minhas compras são lixo?
Não havia percebido que bem ao lado da caixa havia uma senhora, com o semblante indignado. Eu não estava preparado para aquela reação e rapidamente lhe disse:
- Desculpe senhora. Eu pensei que era uma lixeira... Ela me interpelou ainda mais alterada:
- O meu marido está chegando e quero ver o que você vai explicar para ele. O senhor sabe que ele trabalha muito o mês inteiro para comprar as coisas lá para casa?
Eu me vi totalmente perdido e sem conseguir dar mais explicações. Cuidadosamente abaixei-me, retirei o bolo de papéis da caixa, percebendo que, de fato, havia algumas compras no fundo. Tudo isso sob o olhar fulminante daquela senhora e ainda na expectativa de que, a qualquer momento o marido pudesse aparecer e complicar ainda mais a minha situação. Mal respirei e, infelizmente, o percebi chegando:
- O que está acontecendo aqui, meu bem?
Ela, prontamente, respondeu:
- É a falta de respeito das pessoas de hoje! Imagina que elas acham que nossa compra é lixo? Respondeu o marido:
- Lixo? Como assim?
- É. Lixo! Repetiu a mulher. E continuou:
- Jogaram lixo dentro da minha caixa descaradamente, enquanto eu esperava você chegar com o carro.
Felizmente ela não se referiu diretamente à minha pessoa e, até porque, eu já estava me preparando para sair discretamente dali. Afinal, tudo parecia resolvido, havia me desculpado, retirado os papéis da caixa e o casal já se preparava para ir embora. Mas, não pude deixar de escutar aquele senhor que, ponderadamente, disse à esposa:
- Minha querida, eu te falei que não precisava de uma caixa desse tamanho para colocar tão poucas coisas... Podia ter usado as sacolas... Lá em casa está cheio destas caixas! O que vai fazer com mais esta? Ela, ainda inconformada, responde:
- Sei lá, qualquer coisa. Talvez eu ponha fogo ou jogue no lote vago do vizinho.
O marido, pacientemente, responde:
- Devia tê-la deixado aqui para os catadores de recicláveis... A mulher, ainda mais irada, responde:
- De jeito nenhum! E isso não tem nada a ver com o que aconteceu aqui! O que estou reclamando é que nos dias de hoje as pessoas não respeitam o direito do outro. Elas pensam que podem fazer do espaço do outro um lixo... O marido concluiu:
- Tudo bem! Vamos encerrar este assunto. Ainda tenho outras coisas para resolver. E saíram.
Fiquei pensando comigo: para minha sorte, aquele senhor foi informado superficialmente pela mulher sobre o incidente. Não se preocupou com detalhes e nem com o nervosismo da esposa. Ele sequer perguntou-a quem eu era. Ufa! Se é que fui salvo de algo pior, não sei dizer se o fui pela breve divergência do casal ou porque temos muito ainda a fazer pelo nosso planeta.
Luciano Abreu
Enviado por Luciano Abreu em 17/10/2017
Reeditado em 22/10/2017
Código do texto: T6145319
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.