Os maridos, as cuecas

Conversávamos. Uma colega de trabalho, acadêmica da área de geografia. Um colega, da área de educação física. E eu, da linguística. Falávamos do movimento que se instalou no Brasil de perseguição à arte e a pesquisadores que de alguma forma associam-se às questões de gênero e ao sexo e às sexualidades. Agradeço por Foucault não estar vivo e não estar dando uma passadela pelo Brasil. Os “novos” inquisidores o queimariam vivo, certamente. Como quase aconteceu com Judith Butler, na semana passada.

A conversa, até então sisuda, descambou para o assunto "marido", não sei por quê. Minha colega tem marido. Meu colega é marido. Eu, sem marido. Ou como dizia uma amiga minha na época da faculdade, nos anos 90, largada.

Minha colega contou que seu marido está longe, na cidade de Ipatinga. Depois de um curto período desempregado, arrumou emprego lá. E vem para casa nos finais de semana e feriados. No período quando ele estava em casa, demonstrava nítida autoestima baixa.

Meu colega, prendendo os lindos cabelos grandes e castanhos, dá o testemunho de que preferia ficar em casa, se pudesse. Cuidando da casa, do filho. Antes que a dúvida sobrevoe as mentes dos leitores, meu colega é heterossexual, pai de um garotinho de 4 anos, belo como o pai, e de uma garotinha que não tarda a se fazer entre nós.

De minha parte, relato que também passei pela experiência de um marido desempregado, e em casa o dia todo. Não resisti: convenhamos, um marido em casa o dia todo, quando da rotina do dia a dia, é um saco. Depois dessa, qualquer tentativa de retomar o tom acadêmico da discussão foi inútil. De pronto minha colega concordou comigo. Meu colega se absteve de opinar, afinal foi colocado na posição de mártir. E nunca teve marido, pelo menos pelo que se sabe dele.

O tempo do cafezinho acabou, e tivemos de voltar ao nosso trabalho. Não sem antes a conclusão partir desta que escreve: acho interessante nós pensarmos sobre as bases em que a masculinidade se inscreve. Eu, com essa obsessão de sempre ter a palavra final, para acalmar a minha própria inquietação diante de certos assuntos. Cada um foi para o seu canto. Mas eu saí com um certo desconforto.

É que minha colocação, a de que um marido em casa, rotineiramente, é um incômodo acabou parecendo ter caído no achismo. O resto do dia de ontem, pus-me a confabular comigo mesma sobre a matéria.

Houve épocas de meu ex-companheiro, meu ex-marido, portanto, ficar semanas em casa, sem trabalho fora. Técnico em eletrônica, sua profissão. Nos primeiros dias de desemprego, geralmente, os maridos tiram para organizar suas coisas, ferramentas, uniformes que precisam ser devolvidos, inventam de redescobrir um par de meias ou uma cueca que dizem não estar lá, na gaveta de sempre, quando sempre estão. Mas nunca têm tempo, mesmo estando em casa, para fazer aquilo que não fizeram porque estavam trabalhando fora. Como afixar um varal, por exemplo. Um varal de cordas de nylon e suportes de madeira que garimpei na internet. Ficamos quase seis meses sem um varal decente na área de serviço. Com o varal comprado, registra-se. Se estamos fora trabalhando, ao chegarmos não escapatória de perguntas como Você jogou aquela cueca de tal ou qual cor fora?. Mas ainda estava nova, dava para usar. As cuecas podem estar um caco, mas para os maridos ainda dão para usar.

Uma vez, nessa época, chego em casa e me deparo com um par de botinas luzidias apoiadas no limiar da janela do nosso quarto. Meu ex-marido, na garagem, montando um circuito eletrônico de um rádio. Mais um rádio, entre os muitos que já tínhamos pela casa afora. O que estaria fazendo ali aquelas botinas? Abaixo da janela há um banco, que compõe um pequeno orquidário, hoje apenas um pequeno jardim, na lateral da casa. Onde já se viu um par de botinas na janela do quarto, por mais limpas que estivessem, que passara mais de hora engraxando, como ele diria depois. Não pestanejei, coloquei as botinas embaixo, por cima do banco, fora do quarto, fora da casa. E fora das vistas.

A noite não protelou a chegar. Janelas e portas fechadas, recolhemo-nos.

Fora uma noite aprazível aquela. Daquelas que nos enche de calmaria quando a ciência de que não precisamos acordar cedo no dia seguinte entrecorta o sono que vem se instalando. E um inesperado friozinho pela madrugada, daqueles que aproximam os corpos dos amantes, lhes permitindo respirações em uníssono.

A serenidade da noite foi interrompida pelo barulho da batida na janela do quarto. Alguém batia, quase esmurrando. Meu ex-marido tinha o aborrecido hábito de acordar cedo, sempre muito cedo, e batia na janela. A casa pegava fogo? Tivera sido arrombada? Nossos cachorros de alguma foram sumiram? Abri. Do lado de fora ele, segurava as botinas com cara de poucos, pouquíssimos amigos. Sem proferir palavra, virou a abertura de uma das botinas para baixo, de onde saiu água que dava para encher um copo do tipo americano. O friozinho da madrugada, me dei conta, viera acompanhado de bastante chuva.

A criatividade dos maridos floresce quando ficam em casa por muito tempo, desempregados. Ou de férias, seja como for. Mas quero a oportunidade ainda de esclarecer ao meu colega do bate papo de ontem que me referia às mazelas do dia a dia de um casamento, e que maridos como ele as mulheres devemos querer ter em casa. Que passam, cozinham, limpam, também. E que nos respeitam, como companheiras e como mulheres. E que principalmente colocam em outros moldes uma masculinidade inevitavelmente em (des)construção hoje. Num próximo intervalo para um cafezinho eu falo isso.

Alice Zanella
Enviado por Alice Zanella em 19/11/2017
Código do texto: T6176232
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