PALESTRA - Corpo e Palavra

PALESTRA - Corpo e Palavra

O que apresentarei aqui, não sei bem o que será. Não posso afirmar se será uma palestra, uma aula, um discurso; mas, por que conceituar quando se sabe que as coisas se misturam e formam uma nova coisa? Gostaria de dizer que estar aqui não me deixa muito confortável, pelo contrário, é até uma violência para comigo. Porque, aqui, meu corpo se apresenta por inteiro. Esse mesmo corpo que foi ensinado a ser silente, retraído... esse corpo, agora, deve falar. E é nesse instante que sinto meu corpo dançar com as palavras que comecei a proferir. Para que eu não baile sozinho, convido seus corpos para dançarem com meu corpo nessa palestra que soará como um baile. Aceitem essa contradança e vamos bailar com corpo e palavras nessa tertúlia.

As palavras, que aqui forem ditas, não terão a intenção de explicar nada. Quem sou, se não mais um entre tantos. Voz de vozes (Fantasma discursivo). Há muitos deuses que já foram incumbidos de tais explicações; eu prefiro algumas dúvidas e incertezas incompletas. Repito: incertezas incompletas.

Vocês perceberão que não haverá direcionamento em meu discurso; que no momento em que começar, eu já posso terminar. Descarto roteiros. Seguir o caminho correto, não é sinal de ideias concatenadas.

Quando me convidaram para falar, legitimaram a minha palavra e deram vez ao meu corpo. Tudo que agora disser, certo ou errado, não será mérito ou erro somente de minha parte. Percebam que há uma rede e que não estou aqui sozinho. A minha voz vem carregada de ecos, minhas palavras com sentidos opacos e minhas ideias prenhes de ideologias. Eu sou todo discurso.

Falei anteriormente que o corpo foi ensinado a se calar, mas a palavra também foi. Nem toda palavra pode ser dita, nem toda frase deve ser falada. Corpo e palavra calados. Resta o grito que os mecanismos castradores fazem ecoar sobre os violentados; corpo e palavra. Devemos analisar o silêncio e os silenciados. O que o corpo e a palavra deixaram de proferir com a mordaça?

A criança, nos primeiros dias de vida, é silenciada com afeto e cuidados; a mãe oferece o peito e seu carinho maternal para calá-la. Mas, muitos indagarão tal comentário e acharão até estranho e perguntarão: mas se a mãe não oferecer o peito para saciar a fome dessa criança, certamente, ela não morrerá? O choro é perturbador e, muitas vezes, o peito, ou outras formas de silenciar esse grito, são atitudes castradoras; atitudes feitas para simplesmente conter o desejo. O desejo, objeto inexistente, desestabilizador da ordem, precisa, urgentemente, de ser controlado. O desejo faz a palavra e o corpo acordarem e cria a punção vida. É nessa hora que pai e mãe entram como personagens com o propósito de orientar o novo orientador; repetições discursivas. O que pode e o que não pode são dito e redito, até a criança introjetar e repetir mecanicamente.

Pergunto e eu mesmo respondo: existe prazer? Sentimos realmente prazer? O corpo goza e a palavra geme. Gozar e gemer são coisas afins. Mas, sentir o âmago do prazer, suas entranhas, sua mais profunda realidade, será que sentimos? Talvez, talvez, talvez sintamos apenas a emoção de sentir o prazer, pois o prazer verdadeiro nos foi castrado desde o dia em que fomos amaldiçoados com a existência. A emoção é sentimento corriqueiro e que não leva ao desequilíbrio do corpo, nem da palavra.

A palavra foi calada com a própria palavra. Isso não pode! Cala a boca! Você não deve falar assim!

O corpo foi silenciado pela palavra e pelas instituições de controle – família, sociedade, religião e estado – esse é máquina maior e as outras instituições estão a seu serviço.

Vivemos olhando placas de silêncio.

Tais instituições precisam do mutismo para que mantenham a sua ordem. Se cada corpo e palavra resolverem gritar, decerto, alguns dogmas serão quebrados. Não é de interesse de nenhuma instituição – estado, religião, sociedade – tirar a mordaça do corpo e da palavra. O medo do grito é calado constantemente pela sociedade, religião e estado; a ditadura do silêncio encaminha corpo e palavra a uma instituição de consolidação; a escola. A escola confirma o que as outras instituições propagaram. Ela impõe com o disfarce de educar, o seu manual, sua bula de convivência, onde a cura é a morte da vida e a doença do corpo e da palavra.

Mas de onde vem esse terrível silêncio?

Essa mania de erguer o homem e de conceitua-lo como racional, levá-lo acima de outros animais, deturpou certas atitudes. Aí, começaram os conceitos: o instinto é perverso; perder a razão é perder a briga. O prazer passou a ser tratado como algo nocivo; algo a ser dominado. Consequentemente, o prazer de proferir e dançar foram cerceados. Devemos gemer e gozar, mas não devemos estender o prazer além dos ambientes adequados. Tudo tem seu local; tudo tem sua hora. Mas se quiser falar de qualquer maneira? Se quiser que meu corpo fale com vários corpos? Sou calado, sou apontado.

Se ficar em silêncio, por alguns instantes, certamente, vocês não se chocarão. Pensarão que estou procurando o discurso, que me perdi no trajeto das palavras. Mas, se começar a xingar, a tocar em meu órgão, muitos, ou quase todos, olharão com os olhos de recriminação. Família, estado e religião logo se erguem para castrar a minha vontade. Silenciados também silenciam.

Olhando, daqui, vejo corpos apáticos, observando o meu corpo apático que se controla e escolhe cada palavra que deve ser dita. Ninguém quer dançar sem música; ninguém quer compor palavras que desafinam. A valsa do silêncio rege a sociedade e estabelece a ordem através do encolhimento do corpo e da palavra.

Anteriormente, esbocei algo sobre o que é a emoção; não me aprofundei. Mas a emoção não tem profundidade, no que tange ao prazer. Ela acontece sempre que o corpo se desestabiliza e cambaleia no desconhecido. Estou emocionado aqui, mas não sinto prazer. É possível ter emoção sobre a própria emoção; perceber no corpo abalos provocados por ela; todavia, esse mesmo corpo, não sentirá o prazer sobre o prazer. O corpo não conhece o prazer. Ele não foi apresentado ao prazer. A emoção nos foi ensinada; o prazer obrigado a se recolher. O sexo tem emoção, tem gozo, tem gemido; resultado de corpo e palavra, mas, esse sexo, não tem o orgasmo do prazer, não liberta os corpos da emoção.

E o que será, então, o prazer? Punção de vida seria a resposta mais próxima da que acredito. O prazer é a liberdade do corpo. O eterno ir e vir das palavras. É deixar o humano nu diante da sociedade, escancarando as partes pudendas das palavras e rompendo com todo o arranjo engendrado contra o corpo e a palavra. Liberte corpo e palavra e o prazer aparecerá!

Sabendo disso, a emoção passa a ser a superfície das sensações, algo que é permitido, que os olhos não se arregalam e nem a mordaça será apresentada. Ter emoção é diferente de ter prazer.

Mas onde entra a palavra e o corpo?

Quando se calou a palavra? Quando a boca proferiu o primeiro desenho que o prazer queria bradar. Pai e mãe com seu “isso não pode falar” calou a liberdade da palavra. Restaram palavras copiadas, compradas e repetidas; frases decoradas e regras convencionais. A religião, com seu dicionário divino, escreveu bulas para curar a alma, adoecer o corpo e a palavra. O estado organizou gramáticas para manter a ordem das palavras. A sociedade criou borrachas para apagar o que não se deve dizer. Que as instituições vão tomar nooo..! Ocultei a palavra que pensaram, mas, mesmo assim, todos se assustaram, todos vocês arregalaram os olhos. Que pena! Somos seres de linguagem, mas as escolhas das palavras não nos competem. Há um dicionário que nos foi apresentado desde o dia em que balbuciamos os primeiros fonemas.

Quando o corpo foi calado?

Quando ele quis sentir prazer, sem pudor. Quando tiraram a mão da criança dos seus órgãos genitais; quando conhecer o próprio corpo tornou-se pecado e crime. Mais uma vez a religião, mecanismo de controle, filha de um estado maior, deu vida a uma morte com promessas. O estado vestiu o corpo com leis, ordens e a sociedade cobriu com as vestes da hipocrisia, alicerçada em palavras viciadas de boa conduta. O corpo foi estuprado antes mesmo de se entender como corpo.

As palavras que falo, aqui, são palavras permitidas, recolhidas e repetidas; todas escritas no livro da constituição da moral.

Será que existe palavra sem moral e corpo sem virtude?

O discurso erguido e propagado afirma que sim. Resta á poesia vagabundear a palavra. A literatura necessita de vulgarizar os sentidos para que sua arte não fabrique palavras com sentidos ossificados. Eis a esperança escrita nas letras da arte. Eis também o corpo livre e nu pintado nas catedrais. A palavra deve masturbar no papel para que aquele que lê, que ouve, goze junto com ela. O corpo deve andar de membro ereto/aberto para que se penetre toda a vida que foi morta por imposições e castrações.

Nesse discurso espero que alguns de vocês tenham chegado ao orgasmo, ou, pelo menos, que se masturbaram em pensamento com o prazer de imaginar a liberdade do corpo e da palavra. Não sei se ejaculei aqui, mas, certamente, senti orgasmos múltiplos pulsando em mim.

Vi olhos vidrados, agora, sobre mim. Vi o açoite da condenação erguendo e me flagelando. Vi a cara de repulsa dos falsos moralistas. Vi corpos e palavras carregados de instituições. Assustaram-se com simples comentários e julgaram o Poeta com todas as justiças criadas pelo homem. Estou aqui, em corpo e palavra, despido e despudorado. Ainda se assustam com tudo?

Não os culpo. Somos silenciados a todo instante.

Muitos de vocês preferem a palavra no infinitivo, não sabendo que, dessa maneira, ela caminha para o finito. Procuro falar o que nunca falei, pois busco a palavra que ainda não foi censurada na boca. Hei de encontrar aquela que dirá e se propagará num eco interminável de rechaça ao mutismo.

Muitos de vocês estão, agora, afirmando: - ele é doido e não sabe!

Não, não sou! Um louco quebraria o triângulo edipiano e viveria o incesto da vida e mundo. Não rompi com a gramática do mundo, nem gozei nas roupas dos moralistas. Ainda não sou louco! Ainda não sou livre. A liberdade é palavra permitida para ser dita, mas não para se viver.

A liberdade é o meu desejo e o meu desejo é entender o desejo; é saber onde ele está; é fazê-lo meu, amiúde. Quero desejar sempre e sempre ter um corpo que deseja e sempre ter palavras que desejam e latejam. O desejo é cônjuge do prazer. Desejo e prazer gozam, caso permitam, nas faces das instituições. Só há liberdade para o corpo e a palavra quando existir orgia nos almanaques do mundo. Enquanto isso, vamos gemendo com palavras permitidas e gozando com um corpo eunuco.

Nem a imaginação se permite ter prazer, pois ela responde ao externo e o externo foi objetivado com as “decências” estado-religião-sociedade. Dessa maneira, imaginamos o que querem que imaginemos; somos construções sociais. O sonho, fonte de desejos reprimidos, também não tem sua liberdade. Desperta-se quando se percebe que irá romper a linha estabelecida pela realidade. A violência foi tão grande que nem nos damos conta que vivemos nas preliminares da vida, masturbando membros castrados e gozando sem sentir, verdadeiramente, o prazer e seu abismo profundo.

Percebo que já saturei a palavra e os corpos, mas levar á exaustão os dois foi meu desejo, meu prazer. Notem desejo e prazer falados como algo banal, corriqueiro, mas sem a noção de sua profundeza. É como se tudo caminhasse para a superficialidade; destarte, confundimos os sentidos e enganamos o corpo e a palavra. A palavra é corpo; é tesão; é gozo. O corpo é palavra; é sentido; é livre.

Caminhei, até aqui, de braços dados com meu corpo e com a palavra e tentei, de alguma forma, transar com seus corpos e com as palavras que serão ditas logo após a minha apresentação. A relação com o outro é sempre de penetração. Uns gozam, outros fingem; mas no final todos nós sentimos uma emoção. Emoção, mas prazer, jamais.

Agora, levem com vocês uma pergunta: o que temos mesmo de nós?

Mário Paternostro