O outro

O outro

Aqui estou, mas será que sou “eu”? Falo em nome de muitos, com a voz de todos, com o corpo construído por tantos e com o silêncio do “eu”. Não me procurem; não estou aqui. Não sou; sou tantos. Sou resultado de muitos. Por isso, o que aqui for dito, virá com cúmplices. Venho com muitos e sem mim. Nunca fui “eu”, como vocês nunca foram vocês. E aqui estou, falando com vozes para mais vozes e violentando mais “eus” com os outros que me violentaram. Eu sou os outros.

O Outro é o corruptor do “eu”. Aceitar esse outro é macular a autonomia; é buscar possibilidades que darão sempre no fracasso.

Aqui, de frente para vocês, outros estão confrontando o outro, que no caso sou “eu”. Esse “eu”, outro para vocês, foi corrompido na existência pela presença de vários outros. O outro é um corpo estranho que se aproxima para corromper o propósito do “eu”. O “eu”, algo inacessível, resultado do confronto entre vida e morte, é desviado do seu percurso à medida que outros aparecem em seu caminho. Haverá sempre o outro.

É preciso agonizar sozinho e viver em dor ( entenda a dor como a angústia de se perceber) para que, dessa maneira, entendamos o não propósito de estar. É na angústia solitária que a vida se escancara e a existência, essa maldição, se apresenta. Tudo que entrar nessa jornada, corromperá o sentido e o não propósito.

Viver é dor; colocar-se para fora.

O propósito é entender que não há finalidade.

Sendo assim, o outro aparece para que a existência se recolha e se apresente de forma superficial. Tudo que deveria ser sentido é, apenas, percebido. As emoções são apresentadas (sociais e individuais) e o “ex-xitir” – colocar-se para fora - é violentado. Não se coloca para fora quando o que está de fora impede a saída.

O outro é barreira intransponível.

Não há vida entre o “eu” e o outro.

O mundo não se apresenta, de forma plena, para quem foi corrompido pelo outro. O outro é presença constante

Mas como se libertar da presença?

A presença, muitos dirão, é algo fundamental para que o ser nunca recomece do nada. Mas essa presença constrói sempre a partir dela e molda o “eu” com outros que nela existe. A construção do “eu”, sua angústia, seu “ex-xistir” é violentado. A presença se impõe e determina percursos; inventa o "eu". Todo caminho que o “eu” deveria fazer é acompanhado de perto pela presença; o outro aparece a todo instante. O outro, o vigia, também é vigiado pelos outros.

Se o outro, presença constante, deixar de habitar o “eu”, certamente, o acesso a existência será pleno. Com a presença surge a acomodação de vida e o “eu” passa a não existir.

Há tantos outros construindo o “eu” e tantos “eus” recolhidos em sua negação que a existência passou a ter uma finalidade. Existir e “ex-xistir” passaram a ser a mesma coisa.

Existir, com a presença, passou a ter propósito. A vida passou a ter sentido. O acaso, o desconhecido, o abismo; tudo obteve respostas. Com a presença do outro a existência criou seus objetivos. O outro passou a completar o vácuo de estar. Estar e ser ( conjuminados)

O que é esse vácuo?

O “eu” apareceu e sem a oportunidade de escolha, viu-se preenchido com a presença. O vácuo, local do “eu”, é completado com o outro. O “eu” deveria habitar sozinho para que, dessa maneira, pudesse se colocar para fora; se fazer ser.

A presença estabeleceu o fracasso.

Olho o outro e me vejo e, em mim, vejo os outros.

Foram os outros que me ergueram; que me fizeram fracassar; que me esconderam do “eu”. O outro é o culpado de todo o percurso maculado.

É no outro, pai e mãe, que o “eu” começa a ser maculado. A presença permissiva ocupa todo o espaço que o “eu” deveria existir. A violência que o “eu” sofre com a presença dos progenitores, corrompe a sua autonomia. O “eu” é ocupado e construído de fora para dentro, dessa maneira, “ex-xistir” é retraído e, assim, outros habitam no espaço vácuo do “eu”. Pai e mãe são os primeiros algozes em que o “eu” é apresentado.

A existência, essa maldição, não me canso de repetir, passa a ser respondida com a voz da presença do outro. Todo o percurso é acompanhado pela subordinação do “eu”; decerto, pai e mãe, presenças perniciosas, implodem por dentro a autonomia do “eu” e apresentam esse “eu-outro” para outros o corromperem.

O outro é quem fala.

O outro é que existe

O outro é que “ex-xiste”.

Cada corpo preenchido pelo outro carrega um “eu” tímido, violentado desde o dia da cópula.

O “eu” já nasce morto.

Na verdade, não há “eu”, apenas existe o outro e sua presença. Vive-se a sensação de que se “ex- xiste”, todavia, só há a impressão.

O outro que aqui vos fala é o outro.

Vocês são o outro em mim.

Não digo nada sozinho, nem falo nada de mim; sou os outros falando para outros e erguendo novos outros.

Quem somos nós?

Somos os outros!

Mário Paternostro