Etimologia da Língua Portuguesa nº 64

Etimologia da Língua Portuguesa por Deonísio da Silva nº64.

Palavras de significados múltiplos, abecê originou-se da junção da pronúncia das três primeiras letras do alfabeto. Já tireóide, glândula localizada na parte anterior do pescoço, veio do grego thyreoeidés, que tem forma de escudo, de broquel.

Abecê: da junção das três primeiras letras do alfabeto, tal como são pronunciadas. Designava, no século XIII, marca que os escrivães utilizavam para autenticar cópias de documentos. Em operações comerciais a prazo, a original, marcada com a letra “A”, ficava com o notário e as outras duas eram divididas entre o comprador e o vendedor. As três eram impressas em pergaminho ou folha de papel. No século XV, passou a designar também a escolaridade mínima, ainda que se entendesse que quem soubesse o abecê sabia também as quatro operações : somar, diminuir, dividir e multiplicar. Com o tempo, veio a designar ainda as primeiras noções de um ofício, arte, técnica, doutrina. Na primeira metade do século XVI, chegou à língua portuguesa a cartilha, primeiro livro escolar, do espanhol cartilla, sinônimo do abecê. No Brasil, o abecê ganhou o significado de poema de cunho popular, cujos versos celebravam a vida de santos, personagens famosos e até cangaceiros e bandidos, cujos feitos heróicos eram apregoados em estrofes iniciadas pelas letras do abecê, respeitando-se sua sequência, de que é exemplo a letra de Roque Santeiro, peça de teatro de Dias Gomes, transposta para a TV: “ E no abecê do Santeiro/ o que diz o A, o que diz o A?/ O A diz adeus à matriz./ O que diz o B, o que diz o B? depois de informar que o B indica “ batalha de morte”, os versos chegam ao que diz o C: “ Coitado do povo infeliz.” Com a industrialização de cidades próximas a São Paulo, abecê passou a designar a região dos municípios de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano. Aos três se acrescentou mais tarde o de Diadema, mudando-se a designação para abecedê, já existente no século XVI como sinônimo de abecê.

Hieróglifo: do francês hiéroglyphe, radicado no grego, por meio da junção de hierós, sagrado, e glúphos, gravar, inscrever e escrever com cinzel, estilete. No português, é correta também a forma hieroglifo . Designa a unidade ideográfica fundamental da escrita egípcia antiga, decifrada, entre outros, pelo inglês Thomas Young ( 1790 – 1829) e pelo francês Jean-François Champollion ( 1790 – 1832 ). Os dois traduziram a célebre Pedra de Rosetta, de 726 quilos, assim chamada porque foi encontrada por trabalhadores franceses quando construíram uma fortificação em Roseta, cujo nome original é El- Rashid, no Egito, em 1799. A pedra recebeu as inscrições em 196 a.C. Como as tropas francesas foram derrotadas, os ingleses levaram -na para o Museu Britânico, em Londres, onde está até hoje. Ninguém tinha dúvida de estar diante de um tesouro, que narrava feitos em versão bilíngue apresentada em três escritas ao mesmo tempo: a grega, a hieroglífica e a demótica .Young e Champollion, geniais desde muito cedo, eram rivais que se admiravam. Champollion trabalhou 23 anos na decifração e durante 14 anos não viu a pedra. É provável que a escrita hieroglífica tenha sido levada da Mesopotâmia para o Egito por volta de 3300 a. C., por guerreiros ou comerciantes. Mas os sacerdotes se apossaram dela numa época em que dominavam a política e a economia. Entre 2000 e 1500 a. C., os escribas constituíam uma elite que inspirava respeito, reconhecimento e poder, ainda que só 1% da sociedade a que serviam soubesse ler. No entanto, eles escreviam para faraós e sacerdotes, que os renumeravam regiamente.

Mnemotécnica: do grego mnes, recordação, memória, lembrança, téchné, arte técnica. Loiras ou morenas que exerceram forte atração, a ponto de não mais esquecermos delas, ou aquela mulher ou homem que se tornou o objeto do desejo ou do amor eterno, tiveram antes de ser lembrados pela lei da genética. Isto é, antes de serem lembrados por nós, foram memorizados pela cadeia dos DNAs que a passaram de geração em geração, definindo cor de cabelos, formato de rosto, tamanho e demais características que nos fazem ter a imagem que temos e o que somos, naturalmente sofrendo algumas influências e alterações, fornecidas pelo meio. Às vezes, loirice e morenice decorreram não da herança genética, mas dos cabeleireiros, porque também eles se situam em algum ponto da evolução das espécies.

Tireóide: do grego thyreoeidés, que tem forma de escudo, de broquel. No português, é igualmente correta a forma tiróde. Designa glândula endócrina, localizada na parte anterior do pescoço. Glândula é diminutivo de glade, declinação do latim glans, designando inicialmente fruto do carvalho e mais tarde muitas outras coisas em forma de bolota e até órgãos ou partes deles, de que são exemplos a designação da ponta do pênis e da extremidade do clitóris, ambas conhecidas por glandes. A tireóide controla funções metabólicas decisivas. Nas dietas, é comum que pessoas obcecadas por emagrecer ou por não engordar invistam contra a tireóide. Obedecem a curandeiros e médicos irresponsáveis, que, atendendo aos desejos do paciente, ferem normas, incluindo as éticas, que juraram respeitar.

Deonísio da Silva, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo e escritor, é autor de Os Guerreiros do Campo e A vida Íntima das Palavras ( Siciliano ),entre outros 27 livros. E-mail: deonisio@terra.com.br

Revista Caras

2002

Doutor Deonísio da Silva
Enviado por zelia prímola em 22/01/2017
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