Da escuta

A música toma formas diferentes em diferentes momentos da história. Já foi objeto social das famílias reais (como uma forma de mostrar requinte e bom gosto aos convidados, contando com uma equipe de músicos contratados ao dispor da família); arma, em tempos de tensão política e em protestos; e hoje, com toda a tecnologia disponível, a música se mostra como um “objeto” dominado e manipulado facilmente. Com isso, a escuta se tornou extremamente artificial. Uma música de entretenimento (como diria Adorno), ouvida durante a atividade física, no trabalho ou durante qualquer outra atividade. Essa, de fato, é uma escuta prazerosa e entusiasmante (e afinal existem músicas para todos os ambientes e momentos) mas não deveria ser o único tipo escuta. Uma escuta despreocupada e desatenta. Sobre isso Adorno diz: “a música de entretenimento preenche os vazios do silêncio que se instala entre as pessoas deformadas pelo medo, pelo cansaço e pela docilidade de escravos sem exigências. Assume ela em toda parte, e sem que se perceba, o trágico papel que lhe competia ao tempo e na situação específica do cinema mudo. A música de entretenimento serve ainda – e apenas – como fundo. Se ninguém mais é capaz de falar realmente, é óbvio também que já ninguém é capaz de ouvir.” “O fetichismo na música e a regressão da audição” (ADORNO, 1980, p. 3).

Em uma conversa com um educador social da área de música ouvi: “as crianças da periferia não sabem ouvir música, há professores que dedicam suas primeiras aulas do ano letivo à prática de ouvir música, no sentido mais profundo do termo” (e eu me incluo entre eles). Isso é um reflexo da mentalidade que tem sido moldada pelos padrões atuais da indústria cultural. Certa vez uma aluna me disse que não sabia o que era música até fazer um exercício de escuta proposto em aula. Disse que estava impressionada pela quantidade de detalhes que uma escuta atenta faz saltar aos olhos. Esse tipo de escuta deveria ser obrigatória para os músicos, pelo intuito de refinar os ouvidos e a técnica e, obrigatória também a todo aquele que se preocupa minimamente em absorver algum capital cultural legítimo. Baseando nesse capital a formação do gosto e da crítica, principalmente no que diz respeito a arte. Se ao contrário, basearmos essa formação do gosto e crítica numa escuta irrisória e artificial (unicamente de entretenimento), ou ainda, se não formos capazes de absorver criticamente uma arte legítima, tanto menos seremos capazes de produzir. Nosso gosto é formado em parte pela cultura e tradição regional na qual crescemos e em parte por tudo aquilo que ouvimos geralmente. Seria no mínimo inconcebível ter nosso gosto formado por uma indústria que divulga o que é mais rentável e que no mais das vezes é de qualidade seriamente questionável. Já que temos tanto acesso à mídia, que passemos a ouvir um pouco do que está fora das esteiras dessa indústria e quem sabe esperimetaremos uma arte legítima, fora dos parâmetros mercadológicos.

Carlos Júnior

Carlos Jr
Enviado por Carlos Jr em 24/01/2017
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