É preciso despertar a pedra que dorme, e libertar as palavras que se acham  em estado de dicionário... é preciso burilar as pedras e as palavras e transformá-las em alimento para quem tem fome e sede do saber.
 Quis insinuar que se sentia diante da Samaritana de Vespasiano Ramos.
— Dê pão a quem tem fone, e água a quem tem sede.
— Não tenho pão. Só tenho um punhado de farinha e um pouco de azeite.
— Pois deite o azeite sobre a farinha. Aprenda com a natureza, com a  aurora que  tinge a negritude com o alvorecer e o galo que canta para acordar o cancioneiro.
— Cadê o galo?
— Seja tu o galo. Levante a voz do povo. Roube a lã do vizinho e  construa seu tapete voador. Voe sem medo de inovar. Chame a isso de romance. Vai ajudar muito o bibliotecário a organizar seu acervo. E se o tapete não voar, construa, assim mesmo teus sonhos. Se ninguém voar em teu tapete, ele haverá de servir para enfeitar a sala.
— Sim, é preciso que um galo cante, e outro galo levante o canto. O segundo galo  se impõe. Sobrepõe seu canto, subjuga o primeiro galo para mostrar  quem manda no terreiro.
— A imagem do galo e da aurora que se levanta, remete à arte de escrever. A arte está sempre em  construção: o poeta, o escritor, o artesão levanta o primeiro canto e outro galo faz a aurora acontecer.  Outro galo tece o amanhecer de João Cabral.
__Mesmo assim, haverão de acusar-te por plágio e por disseminar  cultura inútil.
— Palavras estão soltas nos ares, ou presas nos dicionários. Devo prender quem as libertou da prisão? 
— Vá em paz, menina Ravenala! Liberta, e serás liberta também.
— Não podes julgar ninguém além de ti mesmo.
Robert   mostrou-se severamente preocupado. Ele agora era réu das acusações de Ravenala.
— Tudo isso para te dizer, Bobbynho que tivemos bom rendimento no trabalho de hoje. Até amanhã.
 Respirou fundo. Ravenala nunca fazia uma brincadeira que não escondesse uma ponta de verdade. Se ele compartilhasse seus temores, poderia desalojar os pensamentos que lhe chegam durante a noite, torturando-o, triturando-o, esfacelando seu sono com a exibição  de cenas fantasiosas com ela. Cenas tão nítidas que se prolongam nos primeiros minutos de vigília.
Preferiu ficar com a imagem de peixes saltando nas espumas borbulhantes na época de piracema.
— Até amanhã — disse ele.
***

Adalberto Lima, trecho de Estrada sem fim...