Suicídios lentos

Não há religião ou crença que veja com bons olhos o suicídio. Vemos nisso um atentado à soberania de Deus e também uma ingratidão diante do presente da vida. Os espíritas são especialmente críticos em relação ao suicídio e não faltarão relatos das terríveis consequências que aguardam aquele que atentou contra a sua própria vida. Os cristãos, curiosamente, tendem a ser um pouco mais compreensivos, pois acreditam que não é o ato de se suicidar, movido por um desespero momentâneo, que irá tirar a salvação de uma alma.

Para eles, o que define é se aqui, na Terra, o sujeito aceitou ou não Jesus como seu Senhor e Salvador. Uma vez que tenha feito isso, não perderá a salvação ainda que seja levado, por circunstâncias adversas, a tirar a própria vida. Por outro lado, o suicida que se matou sem conhecer Jesus já está condenado, mas não por causa do seu suicídio, e sim pela recusa, em vida, de aceitar a palavra do Evangelho. Mesmo assim, é claro, não se recomenda o suicídio de ninguém, ele continua sendo pecado para o cristianismo, embora não defina a nossa sorte no mundo de lá.

Os mortos ouvidos pelos espíritas, no entanto, pintam sempre um cenário terrível para os suicidas, que quase imediatamente percebem a bobagem que cometeram, e se arrependem, pois descobrem que o seu ato tratará consequências piores do que os problemas que se queria evitar com o suicídio.

Bem, tudo pode ser, mas eu, como sempre, tenho algumas dúvidas. O que é um suicida, afinal? É um sujeito que se enforca, pula do prédio, atira contra a própria cabeça, toma uma overdose de remédios, corta o pulso – faz, enfim, um gesto definitivo que, se bem sucedido, encerra a sua vida ali. São muitas pessoas que fazem isso todos os dias, mas, comparativamente, os não-suicidas estão em vantagem, isto é, as pessoas que nunca fizeram nenhum gesto definitivo contra si mesmas são em número maior.

No entanto, quer me parecer que também há suicidas que não fazem nenhum gesto definitivo contra si, mas nem por isso deixam de se matar. Ora, qualquer pessoa que, conscientemente, abusa de alguma coisa que lhe faz mal está atentando contra a sua própria vida. Pode ser o álcool, pode ser o cigarro, pode ser a gordura, pode ser os doces – a pessoa sabe que está fazendo mal a si mesma, e nem por isso deixa de fazer.

Essa pessoa não morrerá imediatamente, não é a mesma coisa que dar um tiro na cabeça. No entanto, é bastante provável que, dentro de algum tempo, o organismo dela passe a sofrer as consequências da sua irresponsabilidade e deflagre uma doença. Essa doença pode, muitas vezes, ser fatal, pode ser a causa da morte da pessoa. E o atestado de óbito dirá coisas como câncer de pulmão, cirrose, infarto, diabetes – menos suicídio. No entanto, a morte dessa pessoa não será mais do que uma consequência de um gesto tomado contra a sua própria vida algum tempo antes. Pior, não será um gesto tomado em um momento de desespero, mas será um gesto cometido reincidentemente.

Como todo o espírito do Evangelho, aceito também pelos espíritas, está preocupado com as motivações por trás dos gestos das pessoas, e não com os gestos em si, por que diabos é que essas pessoas não podem, ao nível espiritual, ser chamadas de suicidas, e ter, em consequência, o mesmo destino danoso daquelas que, em um único momento de fraqueza, resolveram se matar?

Talvez seja ignorância minha, mas até o momento eu não vi nenhum morto dando a entender que essas pessoas sofrem, do lado de lá, o mesmo tanto que aqueles que se suicidaram definitivamente, e não lentamente como elas. Então só é suicida o do gesto único?

Claro que, em tese, podemos admitir que o suicídio lento ainda está sob a direção divina, que o momento decisivo em que a vida acabará ainda está nas mãos de Deus, mas esta vida já está abreviada por conta de um excesso qualquer. A decisão de fazer algo sabidamente contrário à vida – e geralmente as pessoas sabem que estão fazendo, mas arriscam – é capaz de tirar muitos anos que Deus talvez quisesse nos dar. Não é isso o que fazem também os suicidas de fato? Ah, somos todos suicidas

Frederico Milkau
Enviado por Frederico Milkau em 07/07/2017
Reeditado em 07/07/2017
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