A refundação do Brasil. Rumo à sociedade biocentrada (Luiz Gonzaga de Souza Lima)

O cientista político fala sobre sua mais recente obra, que é uma nova interpretação de um país integrado ao sistema mundial, globalizado, desde o seu nascimento, da formação do nosso povo – um povo novo – e da cultura exuberante que conseguiu criar.

Confira a entrevista.

Recém lançada pela Editora Rima, de São Carlos - SP, a obra A refundação do Brasil. Rumo à sociedade biocentrada, discute o país. A IHU On-Line entrevistou por e-mail o autor do livro, Luiz Gonzaga de Souza Lima, que esmiúça as teses defendidas, dentre as quais, o conceito de “formação social empresarial” no Brasil, instituído na época da colonização. Para o cientista político, o Brasil foi o primeiro elo articulador da economia global. “Aqui não existiu uma sociedade humana que tenha dado vida, na sua trajetória histórica, como produto do seu próprio existir, a um tipo novo de economia. No caso brasileiro ocorreu o contrário. Foi um tipo novo de economia, internacionalizada, que criou uma nova organização social dos humanos. Nasceu aqui, formada pela empresa, o que se pode se chamar de Formação Social Empresarial”. Ele explica: “no mundo daquela época, os sistemas sociais serviam para integrar os humanos, reconhecê-los como membros do sistema – mesmo em forma desigual. Aqui não. Aqui o sistema social criou a exclusão”. E Luiz Gonzaga traz uma ideia inovadora em sua obra. Segundo ele, “olhando o mundo a partir do que ocorreu aqui em 1532 e nos anos que se seguiram, pode-se constatar que, enquanto sistema social humano, a modernidade nasce primeiro aqui na periferia e depois se realizará nos centros decisórios da nova dinâmica social mundial, a Europa. É o contrário do que sempre nos ensinaram. A modernidade tropical antecede a modernidade europeia e antecipa, em mais de um século, as formulações teóricas sobre o que é um ser social moderno”. E sobre a formação cultural de nosso povo, ele constata: “o Brasil já nasceu construindo a síntese, os referenciais comuns. Diante da crise civilizatória contemporânea, marcada por confrontos e conflitos entre civilizações, entre culturas e etnias, ser naturalmente multiétnico, aberto à cultura e às características do outro, conviver com elas, vivê-las na intimidade, possui um valor imenso. É um dos mais importantes recursos que o Brasil possui. O Brasil é o futuro. Se um dia a humanidade for um só povo, ele será parecido com o povo brasileiro”.

Luiz Gonzaga de Souza Lima é cientista político mineiro e professor universitário. Estudou psicologia na PUC-Minas e é doutor em Ciências Políticas pela Universidade de Milão. Lecionou Sociologia do Desenvolvimento e Política Internacional na mesma instituição, de 1974 a 1979. Foi professor de Ciências Políticas e Política Internacional na PUC-Rio. A partir de 1992 foi professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, ensinando Teoria Política e Política Internacional, aposentando-se da universidade em 2008. Atualmente vive entre a Fazenda Inglesa, em Petrópolis, e Cumuruxatiba na Bahia, dedica-se a compartilhar suas reflexões e a escrever ensaios sobre a crise contemporânea. O blog pessoal do autor é www.reflexoes-brasileiras.blogspot.com

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a tese central defendida no livro A refundação do Brasil. Rumo a uma sociedade biocentrada?

Luiz Gonzaga de Souza Lima – O livro não possui uma tese central. Apresenta muitas teses. Tenho observado que vários leitores valorizam teses diferentes. A obra é uma nova interpretação de um país integrado ao sistema mundial, globalizado, desde o seu nascimento, da formação do nosso povo – um povo novo – e da cultura exuberante que conseguiu criar. Na realidade, o livro é um novo olhar sobre o que o Brasil é na sua essência. O primeiro capítulo apresenta este novo olhar. Em toda a nossa existência nos escapou a compreensão de nós mesmos. Isso porque tentamos sempre nos compreender com o olhar de fora, antes europeu, hoje americano. Até aprendemos com muita competência construir o olhar deles sobre nós, e os ensinamos a respeito. O livro é um outro olhar sobre nós. Um olhar nosso, do nosso ponto de vista. É um olhar brasileiro sobre o Brasil. Alguns leitores consideram a Empresa Brasil como a questão central, outros consideram como fundamental a construção do povo planetário que aqui nasceu e outros ainda a natureza mundial da nossa cultura. Muitos também consideram a necessidade e as possibilidades de uma refundação como a tese principal. Essa terminou por dar título ao livro.

IHU On-Line – Quais os argumentos que justificam a afirmação de que o Brasil teria sido fundado como uma empresa?

Luiz Gonzaga de Souza Lima – Não existem argumentos para demonstrar a necessidade de compreender o nosso país como sendo uma empresa, a Empresa Brasil. Existem os fatos. E eles são abundantemente suficientes para fundamentar a formulação e estimular uma reflexão no âmbito da teoria social. O nosso território foi privatizado em 1532, dividido em fatias e entregues a consórcios empresariais internacionais, capitaneado por portugueses, mas reunindo capitais de várias proveniências na Europa, em especial dos países baixos – onde mais tarde nasceria a Holanda –, da Itália e de outros centros. Tal processo se deu dentro dos marcos regulatórios da privatização definidos pela corte portuguesa, que se considerava – com autorização do papa – proprietária deste pedaço do mundo. A privatização foi para sempre, pois era hereditária, conforme o próprio nome indica: capitanias hereditárias.

O que foi realizado nestes imensos pedaços de terra concedidos hereditariamente aos novos proprietários? Empresas! Os engenhos eram empresas agro-industriais avançadas, que passaram a produzir para a Europa e para todo o mundo milhares de toneladas de um bem até então raro, o açúcar. Eram empresas do sistema produtivo europeu, como nos mostra o professor Celso Furtado. Eram internacionais em sua composição, importavam de muitos lugares do mundo e exportavam para o mundo inteiro. O Brasil foi o primeiro elo articulador da economia global. Aqui não existiu uma sociedade humana que tenha dado vida, na sua trajetória histórica, como produto do seu próprio existir, a um tipo novo de economia. No caso brasileiro ocorreu o contrário. Foi um tipo novo de economia, internacionalizada, que criou uma nova organização social dos humanos. Nasceu aqui, formada pela empresa, o que se pode se chamar de Formação Social Empresarial. Essa formação social, própria nossa e que, depois, se espalhará pelo mundo, não deve ser considerada uma sociedade nos termos que se pode compreender os outros sistemas sociais existentes no mundo na mesma época. As outras sociedades se caracterizavam por uma relação entre território, etnias e culturas que não existia aqui. Eram locais, possuíam grande autonomia, produziam para elas mesmas e apresentavam muitas outras características. A empresa, ao contrário, dissolveu sociedades para se estabelecer. Dissolveu as sociedades indígenas que viviam em nosso território e submeteu os remanescentes à servidão e à escravidão. Em seguida, dissolveria muitas sociedades africanas para raptar, sequestrar e transportar milhões de africanos que se transformariam em escravos nessa nova organização produtiva que nasceu.

IHU On-Line – Como desconstruir a “formação social empresarial” nascida aqui na época da colonização? E como a própria cultura brasileira pode contribuir nesse processo, no sentido de vislumbrar um futuro diferente para nosso país?

Luiz Gonzaga de Souza Lima – A Formação Social Empresarial criou um outro modo de “ser sociedade humana”, fundada sobre a economia e a razão instrumental. Esse sistema social se sustentava pela escravidão, pela servidão e pelo domínio de poucos e possuía seus centros de poder fora dele. Sustentava-se sobre relações sociais novas, que devem ser denominadas de incorporação excludente. A maioria dos humanos organizados por esta empresa estava incorporada ao trabalho e excluída até do reconhecimento como ser humano, constituindo-se em propriedade privada. Peças, como eram chamados os escravos. Eram mercadorias, como outra qualquer. Os escravos eram contabilizados como bens, eram comprados e vendidos e sua presença aqui não era fruto de imigração, mas considerada importação. Esses humanos de tipo novo eram incorporados ao trabalho e excluídos de toda a vida social, reservada para uma minoria que se autodenominava de sociedade. Outros milhões de humanos passaram simplesmente a viver uma nova situação desconhecida: a exclusão. Seus territórios foram invadidos e apropriados pela Empresa Brasil, o tal processo de colonização. Foram excluídos dentro de seu próprio país, cuja propriedade lhes foi arrancada. No mundo daquela época, os sistemas sociais serviam para integrar os humanos, reconhecê-los como membros do sistema – mesmo em forma desigual. Aqui não. Aqui o sistema social criou a exclusão.

A modernidade tropical antecede a modernidade europeia

A Formação Social Empresarial, se considerada nos seus principais eixos valorativos, não pertence à sua época, ao feudalismo que começava a viver a sua lenta agonia. Tal formação social só pode ser compreendida como uma organização social moderna. É surpreendente a congruência entre os eixos valorativos da nossa formação social originária e os conteúdos da modernidade. Tudo foi transformado em mercadoria, até os humanos. A natureza foi dominada, a razão instrumental orientou os planos e suas execuções, tudo em função de projetos individuais. A Terra deixou de ser o centro do universo, mas o homem, entendido como indivíduo, passou a ser o centro do mundo e a razão o centro do homem. Olhando o mundo a partir do que ocorreu aqui em 1532 e nos anos que se seguiram, pode-se constatar que, enquanto sistema social humano, a modernidade nasce primeiro aqui na periferia e depois se realizará nos centros decisórios da nova dinâmica social mundial, a Europa. É o contrário do que sempre nos ensinaram. A modernidade tropical antecede a modernidade europeia e antecipa, em mais de um século, as formulações teóricas sobre o que é um ser social moderno. Essa formação social desequilibrada, moderna e, sobretudo, injusta criou o que se pode chamar de desequilíbrio estável. Do ponto de vista formal, durará mais de 350 anos. Suas características estruturais chegam até nossos dias.

IHU On-Line – E como se caracterizava a administração desta empresa-nação?

Luiz Gonzaga de Souza Lima – Para o funcionamento da empresa foi organizada a administração colonial. Sua função era assegurar, por todos os meios, que a empresa fosse lucrativa. Essa sua função principal acabou por transformar-se em sua única função. Era necessário combater e expulsar os habitantes da terra, garantir a ordem em um sistema social em que a maioria dos humanos era excluída ou escravos, garantir a produção e a exportação, e cobrar as taxas que eram transferidas para a metrópole portuguesa. Todos os seus recursos, humanos, técnicos, financeiros, etc., eram empregados para garantir o sucesso das empresas aqui instaladas. Esse sucesso era o que se entendia por desenvolvimento. O Brasil colônia não possuía nem transportes, nem escolas, nem estrutura de saúde; não existia organização urbana (as empresas eram rurais...), mas suas empresas estavam entre os mais lucrativos negócios do mundo. Essa administração colonial, com estas mesmas finalidades, transformou-se em Estado. Não um estado nacional, como sempre se falou por aqui, pois ainda não existia uma nação e a maioria da população era excluída ou escrava. Não era uma representação política da população que aqui vivia. Foi imposto de cima e de fora, e sua finalidade era manter a ordem social absurda da Formação Social Empresarial. Ao transformar-se em estado independente, a administração colonial deu vida a um novo tipo de organização estatal: o Estado Econômico Internacionalizado. Seus lineamentos fundamentais permanecem até hoje. Somente essa abordagem é capaz de explicar como um país, cuja economia é a sexta economia do mundo capitalista, possui uma das maiores cargas fiscais do planeta – aproximando-se a 39% do PIB – e não possua escolas, nem estrutura de saúde, nem saneamento básico, nem organização urbana, transportes para humanos, etc. para a maioria de sua população, produtora de tamanha riqueza. O Estado Econômico Internacionalizado é aquele cuja finalidade é garantir que as empresas aqui instaladas sejam as mais lucrativas possíveis e manter uma ordem social baseada na pobreza e exclusão da maioria dos habitantes do país.

IHU On-Line – Como entender o processo de formação da nação-Brasil, dentro do conceito de “formação social empresarial”?

Luiz Gonzaga de Souza Lima – Observada a quinhentos anos de distância pode-se dizer que a Empresa Brasil, a criação da Formação Social Empresarial e do Estado Econômico Internacionalizado foi como um tsunami permanente, uma tragédia que se abateu sobre a humanidade. Foi uma gigantesca e profunda intervenção sobre a humanidade, modificando-a profundamente. Milhões de habitantes foram dizimados, e outros milhões transportados para continentes diferentes daqueles em que nasceram. Dissolveram-se culturas e etnias. E tudo somente para ganhar dinheiro e para produzir um mundo articulado economicamente para benefício de alguns poucos. Entretanto, esta intervenção gigantesca sobre a trajetória histórica da humanidade gerará outros frutos além da Empresa Brasil e de seus derivados institucionais. Trata-se do povo novo que aqui nasceu e da cultura que este povo criou.

Depois de milhões e milhões de anos separada em vários continentes, divididos por oceanos inexpugnáveis, a humanidade se reuniu aqui no Brasil. Gentes de todas as Áfricas, de todas as Europas se juntaram com a população brasileira originária. Mas aqui foi diferente. Aqui se misturaram. E assim se criou um povo novo, uma nova etnia, como tão bem nos mostrou o mestre Darcy Ribeiro.

O primeiro povo planetário

Aqui surgiu o primeiro povo planetário, a mistura de todos, pois mais tarde chegariam também os europeus orientais e os povos do extremo oriente. Os brasileiros originários foram como a placa mãe de um povo novo, de um novo jeito se ser humano. O povo brasileiro é o primeiro povo planetário, que uniu a humanidade novamente, após a separação imposta pela história geológica do planeta terra. Esse fato já possui em si mesmo uma importância imensa, e esta importância cresce a cada dia. Embora reunidos aqui, amontoados, pode-se dizer, nos limites estruturais estreitos e perversos da Empresa Brasil e da Formação Social Empresarial, os diversos povos terminaram por se misturar, ao contrário de outras regiões da terra onde também se encontraram. Dessa mistura surge um povo que é a reunião de muitas humanidades. A circunstância deste re-encontro e desta fusão de humanidades ter ocorrido em modo tão desigual e perverso não lhe retira o seu conteúdo principal, que é o re-encontro, a nova re-união dos humanos em uma inédita fusão étnica. O Brasil já nasceu construindo a síntese, os referenciais comuns. Diante da crise civilizatória contemporânea, marcada por confronto e conflitos entre civilizações, entre culturas e etnias, ser naturalmente multiétnico, aberto à cultura e às características do outro, conviver com elas, vivê-las na intimidade, possui um valor imenso. É um dos mais importantes recursos que o Brasil possui. O Brasil é o futuro. Se um dia a humanidade for um só povo, ele será parecido com o povo brasileiro.

IHU On-Line – Em que sentido a obra nos ajuda a entender o Brasil (bem como seu papel) no atual processo mundial de globalização?

Luiz Gonzaga de Souza Lima – A perversidade estrutural do encontro que nos gerou está marcada para sempre, mas a trajetória brasileira mostra que se impõe a busca de um outro modo de convívio, impõe-se a criação de uma outra forma de organização social para abrigar este encontro tão importante, impõe-se a construção de um outro modo social de ser, que acabe com a exclusão e a desigualdade. Certamente saberemos construir este novo sistema social fundado na igualdade entre os povos que aqui vivem, descendentes daqueles que cinco séculos atrás aqui se reuniram, no respeito às populações originárias, aos que chegaram e a seus descendentes. Um sistema social em que todos manterão suas dignidades, sua autonomia cidadã, onde o encontro e a fusão ocorrerão somente pelo prazer e pelo amor. E ocorrerá. Isso porque ser mestiço é ser esta síntese humana que os brasileiros exprimem. Um povo bonito e alegre, cheio de originalidades e belezas. A construção deste novo sistema social é a Refundação do Brasil.

IHU On-Line – O que deveria fazer parte do processo de refundação do Brasil?

Luiz Gonzaga de Souza Lima – Os conteúdos da refundação não precisam ser construídos nem buscados fora. Encontram-se já na nossa cultura, na intimidade da nossa alma mundial. São a essência dela e, ao mesmo tempo, seus motores criativos mais poderosos. Construir um sistema social coerente com os valores centrais da cultura brasileira é a refundação do Brasil. Essa não é uma ideia externa que pode ser praticada aqui no Brasil. Já existiram projetos utópicos externos ao sistema social, que não brotavam dele, e que tentaram se aplicar ao Brasil. A refundação brota da intimidade da Formação Social Empresarial. Como fomos fundados como empresa, toca-nos construir pela primeira vez em nosso território uma sociedade humana de verdade. Sociedade não se faz com economia. A que se faz com economia é esta que aí está. Sociedade se faz com reconhecimento, afeto, perdão. Sociedade é a organização social que permite e ajuda seus membros a serem felizes. É fundamental o reconhecimento de todos que estão vivos como humanos iguais. Somos sobreviventes de uma tragédia social de cinco séculos e diante de nós está a tarefa de construir uma sociedade com os destroços da nossa absurda formação social originária. A refundação é a transformação definitiva das estruturas sociais da Empresa Brasil. O Brasil é hoje o campeão mundial das desigualdades. Sempre foi assim. Chegou o momento histórico desse modo de ser ser superado.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar mais algum comentário?

Luiz Gonzaga de Souza Lima – O modo como os humanos são organizados e vivem constituem uma espécie de software social, conceito que apresento e desenvolvo em meu livro. Naquele 22 de abril, naquela praia da Barra do Cahy, ficaram cara a cara, frente a frente, dois sofwares sociais. Aquele centrado na vida e na harmonia com a natureza, o software social da vida, das nossas tribos, e aquele dos que chegavam, no qual a vida era uma energia instrumental para ser manipulada com fins de êxitos individuais, da dissolução de povos, culturas e natureza. Era o sofware social da morte que constitui a essência do projeto civilizatório moderno. Prevaleceu o segundo. Muitas humanidades foram destruídas para assegurar a sua afirmação e, junto com essa tragédia humana, foi também destruída e degradada parte significativa da herança cósmica de todas as espécies vivas do planeta terra. O software social moderno terminou por conduzir todas as sociedades a um impasse novo para os humanos. Agora está ameaçada a própria sobrevivência da espécie humana e do planeta terra. E uma questão de vida ou de morte.