O paraíso

Deitados na grama de meu jardim, a olhar as estrelas e imaginar que seu brilho é mais antigo do que o vemos. Uma estrela cai, fazendo um barulho estranho, e ela faz um pedido, secreto, um olhar indiscreto bastou-me para guardar meus pensamentos, só pra mim.

A grama é tão gostosa de se deitar e caminhar, uma grama muita limpa e de um tom verde brilhante mesclado a algumas eventuais folhas. Mas minha mulher é mais linda do que os bosques, seus olhos de cor púrpura que me hipnotizam, e sua fala doce que continua além das palavras.

Ela é uma deusa, lê a minha mente, e sempre me traz pratos deliciosos para saciar a fome. Ela é bem semelhante a mim, exceto pelas asinhas de querubim que é só dela. Apesar de ser um pouco egoísta, sempre teve comigo uma atenção forte e confortável.

Lilit, a primeira rainha dos homens, minha esposa. Até ajudava a designar nomes às criaturas que encontrávamos pelo jardim.

Moça sempre perfumada, como se seu cheiro estivesse carregado de hormônios libidinosos. Gostava muito de sair sozinha e às vezes até demorava um pouco, dizendo que parou para conversar com uns amigos...

Seus pensamentos eram protestantes, media cada palavra e independente da veracidade, dizia sempre de forma quase sedutora como se realmente estivesse com a verdade. Há de se dar o valor merecido; porque minha amada ensinou-me demasiada quantidade de sabedoria e experiências únicas em toda a história... Como me olhava, como falava em seu tom suave e único.

Era belo o sol, transpassando através das árvores quase que colorindo o chão numa malha de feixes de luz, de folhas e flores que eventualmente caiam ao solo, motivados em sua fraqueza e velhice, e por uma leve brisa de primavera findando a sua jornada.

Como de costume, Lilit surge do nada, passando-me as suas suaves mãos pelo rosto enquanto olhava-me de pertinho quase a tocar seus lábios nos meus; me olhando fixamente entre os olhos, dando a sensação de ser olhado em ambos os olhos, como se me olhasse na alma. Aqueles olhos de cor sem igual, púrpura à noite e azul escuro de dia. Neste dia, ah neste dia senti uma ansiedade grande em tê-la comigo por horas e mais horas, no limite do possível. Então me agarrei em suas coxas lisas, macias, delicadas, e pedi para não partir, que me abençoasse com sua majestosa presença. Todavia foi m vão, pois novamente saiu repentinamente como de costume repetindo o mesmo mantra que era para ficar quietinho em minha caverna, e que logo mais voltaria me ver um pouquinho mais.

Não gostei dessa ideia, não é justo, afinal qual é o sentido de minha existência em relação a ela? Vou segui-la e ver o que faz na próxima vez em que vier me visitar.

E ela veio dentre as árvores, trazendo consigo presentes prazerosos. Primeiro, a agradável sensação de estar com ela, de novamente ter o privilégio de olhá-la e guardando sua imagem na memória, como em fotografias.

Trouxe-me também uma maçã dizendo baixinho perto dos ouvidos que esta fruta era mágica, que dentro dela tinha a essência de muitos planos e que se comesse, conseguiria pensar como ela. Oh meu amor! Disse-me ainda que também que poderia unir minha alma com a dela sempre que fosse de meu desejo.

Minha preciosa Lilit mordeu a suculenta fruta deslizando lentamente seus lábios carnudos como que forçando meus desejos, lábios em um tom rosa, suculento. Mais desejosos que a fruta; e ela arrancou um pedaço dela e num beijo demorado passou-me para a boca um pedacinho numa mágica poção de saliva e fruta. Só desejei devorar e sugar o néctar deste inesquecível pedacinho de êxtase. E por encanto logo percebi que estava nu diante de minha possuidora, peguei algumas folhas e cobri meu corpo, pra que ela não visse meu corpo expressando meus naturais desejos.

Lilit quis ir embora, que como sempre é do seu costume, mas estranhamente senti certa desconfiança, e numa vontade vinda do limite dos instintos da minha natureza agora mais racional do que nunca estive; decidi segui-la. Queria saber quem eram esses tais companheiros de trabalho, estes tais colegas que tantas vezes disse parar para dialogar. Neste dia, já cansado de praticar o idioma dos anjos, a língua portuguesa, um tanto cansado de criar rótulos, decidi acompanhá-la. Ou melhor, segui-la.

Saiu cedo, logo após o raiar do astro rei, o sol. Eu a vi seguindo à direção sul a deslizar por entre as árvores, tão ágil que aos poucos foi sumindo em minha visão. Mas estava determinado. Buscando locais aproximados sentindo o seu inesquecível cheiro, acabei por encontrá-la próxima a um riacho, ajoelhada e fitando-se numa poça surgida dum pequeno desvio nas águas. Eu a ouvi quando ao falar sozinha disse tristemente: “Meu pai, porque me abandonou, porque já não fala mais comigo?”

Aproximaram-se dois anjos para confortá-la. Os dois a abraçaram e ergueram-na nos braço, colocando seu corpo perfeito a deitar num lindo gramado.

Estava olhando quando ela recebeu um santo beijo em sua testa. A presença dos anjos refletia uma energia que enchia Lilit de alegria. E quisera eu não ter visto, mas os anjos disseram a ela que tinha a missão de cuidar de mim, um dos raros animais de estimação que podiam falar como os deuses. Confirmaram com ela se eu tinha comido da fruta para perder minha vida eterna. Foi um colapso mental, pois não conseguia compreender os porquês disso. Uma imagem que revoltou todo meu instinto de poder, todas as suas palavras surgiram na memória e senti que tinha sido enganado, que eram mentiras, estratégias que não tenham a ver com minha inocência; e então corri muito, corri por semanas até encontrar outra caverna para habitar.

Dentro de alguns dias lapidei o interior conforme minha sensação de conforto. É claro que estive a pensar todo o tempo no que tinha ouvido e visto... Porém com o tempo, a sensação aos poucos foi desaparecendo, dando lugar a uma profunda saudade de minha estranha amada. Minha querida Lilit, que gostava que eu a chamasse de Sophia, sábio ser mítico angelical! Que será que ela estaria fazendo? Quem sabe poderia estar precisando de mim... foi o que pensei, ou o que queria que fosse realidade.

Como numa força gravitacional, arrumei algumas coisas e logo parti para um desejoso reencontro com minha companheira de séculos.

Voltei pelo mesmo caminho que tinha corrido, levei algumas semanas só pra localizar o ponto exato em que tinha visto Lilit pela última vez. Sentei-me numa pedra, apoiei meu queixo com uma das mãos e esperei. Esperei por longos dias, alimentando-me somente com o capim que crescia próximo dali, até que um dia chegou o momento desejado. Enquanto admirava as estrelas, dentre elas surgiu minha preciosa Lilit a deslizar pelo vento, voando em minha direção, tão alucinante que quando percebi, ela já estava em minha frente perguntando por que eu havia sumido no tempo.

E expliquei dizendo: - Lilit, não compreendo suas atitudes em relação as suas palavras.

Lilit pegou minha mão e me levou para uma árvore com muitos cipós, pegou uma das frutas que estavam esparramadas pelo chão e mandou-me comer. E eu fiz novamente o que me pediu como se fosse uma ordem inquestionável... Passado alguns instantes, dopado com a fermentação da fruta, abriram-se meus olhos para a estrutura do bem e do mal. Então disse pra ela aguardar um pouco, porque tinha um presente para ela, e apenas iria buscá-lo.

Saí num bosque próximo para pegar uma pulseira que tinha feito com o desejo de dar-lhe como presente. Quando ouço potentes palavras a ecoar em meus ouvidos, direcionando a atenção duma energia nunca antes sentida. E estas eram as palavras... Ah filho querido, o que tens feito neste mundo que criei?

E respondi: Senhor Criador, a mulher que me deste, não fica comigo, mas permanece muitas vezes com outros anjos e até filhos deles ela possui criaturas, grandes e violentas. Meu Senhor, isto é o que preocupa minha alma.

E Deus me disse: Adão, eu te criei do pó e é meu único filho humano. E tanto que quero o seu bem que lhe darei uma companheira do seu próprio sangue. E ela será sua auxiliadora em tudo o que planejar. Agora durma um pouco, porque quando acordar, não sentirá mais solidão.

Acordei com duas pequenas mãos, macias a deslizar pelo meu corpo, uma mulher delicada cujo único desejo a demonstrar em seu rostinho era o de estar comigo. Dei-lhe o nome de Eva, a diva do homem. E seguiram-se dias agradáveis. Como se um novo mundo tivesse surgido. Agradeci aos céus dizendo a Deus: “Esta sim, é carne da minha carne, sangue do meu sangue”, o amor vitoriou em sua plenitude. E será chamada de minha mulher. (Gênesis, capitulo 2, versículo 23 ).

Enquanto minha Eva estava a dormir, quieto sai em busca do que tinha acontecido com Lilit.

Andando por algum tempo encontrei uma porta de madeira perfeitamente encaixada numa gigantesca pedra. Eu entrei por essa porta, e descobrindo o que havia acontecido com minha primeira amada. Fechada numa jaula, Lilit estava sozinha com uma aparência estranha, pele de lagarto e de cor azul.

Perguntei-lhe: - O que aconteceu contigo, minha amada?

- Seu Criador fez isso comigo. Veja, gosta do que vê? Ele me transformou neste demônio que vê...

Adão pranteou em choros porque queria ele ter Eva como esposa e Lilit na plenitude de sua beleza, como amante.

{A história de Lilit como primeira esposa de Adão, existe num pergaminho, guardado a sete chaves no museu do Vaticano}.

Super Interessante, agosto 1988, nº8, ano 2