Lendo “A Montanha Mágica”

A Cantada de Hans Castorp

Hans Castorp diz a Clawdia Chauchat na famosa noite de carnaval da “Montanha Mágica”: “être assis près de toi comme à présent, voilà l’éternité”.

Haveria cantada mais rimbaudiana?

Depois dessa, a fascinante russa de olhos rasgados acabou por ceder às investidas daquele “filho traquinas da vida”.

Sobre Offenbach:

“A peça, plena de talento e de espírito, prosseguia com todo o engenho e jovialidade que a caracterizavam. O final era pura exuberância: começava por um galope, divertido na sua pretensa vacilação, para avançar para um cancan arrojado, evocação de cartolas brandidas nos ares, de joelhos bamboleantes e saias esvoaçantes, e terminar num fulgor cômico e triunfal que parecia não ter fim”.

A Paixão

“poderíamos definir a paixão como o amor que vive na dúvida”.

“Como sabemos, a paixão deixa tão pouca margem para o juízo estético como para o moral”.

O Cinema

“As pessoas esfregavam os olhos, olhavam fixamente para a tela, envergonhavam-se de tanta luz e desejavam regressar à escuridão, na esperança de voltarem a ver, na esperança de depararem com coisas que, embora pertencendo ao passado, eram transplantadas para o presente e retocadas pela música”.

O Luto

“--Resquiat in pace--sentenciou. --Sit tibi terra levis. Requiem aeternam dona ei, Domine. Estás a ver, quando é a morte que está em causa, quando se fala para mortos ou de mortos, o latim volta a ganhar sua pujança. É a língua oficial para estes casos, por aqui se vê como a morte é uma coisa muito especial. Mas não penses que é por cortesia humanística que falamos latim em sua honra. A língua dos mortos não é o latim erudito, compreendes, o latim dos mortos é de uma natureza completamente distinta, diametralmente oposta, por assim dizer. Estamos a falar do latim sacro, do dialecto monástico da Idade Média, de um cântico surdo, monocórdico, que parece vir das profundezas da terra -- Settembrini não se identificaria com ele, não é coisa que agrade a humanistas e republicanos e a esse género de pedagogos, trata-se de uma outra ordem de ideias que existe. Creio que é importante distinguir entre as várias ordens de ideias ou tendências existentes, como seria mais correcto dizer. Há duas: a piedosa e a livre. Ambas têm os seus méritos, mas o que me aflige na tendência livre, que é a de Settembrini, é o facto de ela reivindicar para si o monopólio da dignidade humana, o que é um exagero. Também a outra comporta, a seu modo, muita dignidade humana, estando na base de uma boa dose de decoro, comportamento respeitável e nobreza de maneiras, até mais do que a ‘livre’, se bem que, em especial, não perca de vista a fraqueza e a fragilidade humanas e seja enformada pela ideia da morte e da decomposição. Já alguma vez viste no teatro o Dom Carlos, a forma como a vida decorria na corte espanhola, quando o rei Filipe entra, todo vestido de negro, com a Ordem da Jarreteira e do Tosão de Ouro, começando lentamente a tirar o chapéu que quase parecia um dos nossos chapéus de coco? Soergue o chapéu e diz: ‘Colocai os vossos chapéus, Grandes de Espanha’, ou algo semelhante -- uma atitude extremamente digna, não há como negá-lo, ali não há nada de descuido ou desleixo, bem pelo contrário. E é a própria rainha que acrescenta: ‘Na minha França, tudo era bem diferente’, claro que era, tudo ali lhe parece demasiado formal e meticuloso e por isso anseia por um mundo mais alegre e humano. Mas o que quer, afinal, dizer humano? Humano é tudo à nossa volta. O temor a Deus, a submissão e solenidade, o rigor formal dos espanhóis dão, a meu ver, azo a um modo muito digno de humanidade, mas não nos podemos esquecer de que a mesma palavra ‘humano’ pode encobrir todo género de desmazelo e de frouxidão”.

“Creio que o mundo e a vida foram feitos para andarmos sempre vestidos de preto da cabeça aos pés, com uma golilha engomoada em vez do vosso colarinho, mantendo uns com os outros uma relação grave, discreta e formal, com a ideia da morte em pano de fundo -- sentir-me-ia assim feliz, tudo teria uma feição moral”.

“Os moribundos, atendendo à sua situação, deviam ser tratados como permanentes aniversariantes”.

“Houve sempre na minha natureza uma certa inclinação para a seriedade e para o repúdio de tudo o que é ruidoso e robusto (…). Um pano preto, estás a ver, com uma cruz de prata ou com as letras R. I. P, ‘requiescat in pace’: para mim as palavras mais belas, muito mais simpáticas do que ‘viva fulano ou sicrano’, que não passam de vozearia e algazarra”.

“Os funerais têm qualquer coisa de edificante -- já me lembrei até de que, para a nossa formação espiritual, mais importante do que ir à igreja seria ir a um funeral”.

A Estupidez

“Ah, a estupidez! Há tantas formas de estupidez e com certeza que a inteligência não é a melhor delas…”.

O Amor

“… o amor imprudente é genial”.

“Le corps, l’amour, la mort, ces trois ne font qu’un”

Direitos

“… há direitos a que o nosso bom senso não devia recorrer”.

O Tempo

“Será possível narrar o tempo, o tempo em si e por si, o tempo como tal? Claro que não, isso seria uma perfeita loucura! Uma história em que se lesse ‘o tempo passava, decorria, fluía’, e assim sucessivamente, não poderia ser designada narrativa por ninguém em seu perfeito juízo. Era como se um louco mantivesse uma única nota musical, ou um só acorde, ao longo de uma hora e quisesse convencer-nos de que se trata de música*”.

*Naquela época ainda não tinha aparecido ainda o John Cage.

“… a oposição entre vida e religião deveria ser avaliada à luz da oposição entre tempo e eternidade. Pois só no tempo se dava o progresso, na eternidade não havia lugar nem para o progresso, nem para a política e a eloqüência. Na eternidade deitávamos, por assim dizer, a cabeça no regaço de Deus e assim nos deixávamos ficar, de olhos fechados. A isso se resumia a diferença entre religião e moralidade, ainda que descrita de modo confuso”.

“A eternidade não é uma ‘linha reta’, mas sim um ‘carrossel’”.

“Dizem que o tempo de espera parece sempre longo. No entanto, ele pode ser também, ou é-o com efeito, breve, pois engole imensas massas temporais que ficam, deste modo, por viver e desfrutar”.

“Mas estes quartos de hora excedentários, que nao se encaixam em números redondos, acabam por não ser contabilizados. São pura e simplesmente assimilados pelo caminho, quando tempo é coisa que não nos falta, como acontece, por exemplo, quando andamos em viagem, quando passamos longas horas sentados no comboio ou em qualquer outra situação de espera prolongada e de tempo morto, quando tudo o que na vida importa se reduz unicamente à passagem das horas”.

“Para já, basta recordar ao leitor a celeridade com que uma série de dias, uma ‘longa’ série de dias, passa para um doente que está de cama: é sempre o mesmo dia que se repete. Sendo, porém, o mesmo dia, não é no fundo muito correcto falar de ‘repetição’: trata-se, antes, de algo uniforme, de um agora estático, da eternidade. Servem-nos uma sopa à hora do almoço, como já nos serviram ontem e nos voltarão a servir amanhã. E nesse instante aflora-nos uma sensação estraha, sem que conheçamos a sua causa ou origem: sentimos uma vertigem no momento em que no servem a sopa, presente, passado e futuro começam a diluir-se, a misturar-se, e o que se nos revela como sendo a verdadeira forma do ser é um presente imóvel, um presente em que nos servem eternamente a sopa”.

Exílio

“Há quem precise partir de vez em quando e tenha sempre de voltar, e há quem prefira ficar o tempo necessário para não ter de regressar nunca mais".

Pecado

“Os deuses e os mortais visitaram algumas vezes o reino das trevas e acharam o caminho de volta. Mas os seres do submundo sabem que quem come o fruto do seu reino, fica para sempre refém dele”.

O nefando Settembrini.

O Corpo

“Nada há de mais doloroso do que constatar que o nosso lado orgânico, o nosso lado animal, nos impede de servir a razão”.

“…na curva das suas pernas, nas suas costas e vértebras cervicais, nos braços que comprimiam os pequenos seios –, numa palavra, no seu corpo, nesse corpo langoroso e sublimado, extraordinariamente sublinhado pela doença, um corpo que a doença reduzira de novo a corpo”.

“O dilema, meu caro senhor, a tragédia começa quando a natureza foi cruel a ponto de fracturar -- ou de obstruir desde o início -- a harmonia da personalidade, unindo um espírito nobre e ávido de vida a um corpo inapto para viver”.

Juventude

“Ah, a descomunal permeabilidade da juventude! Ela é a razão de ser do desespero dos pedagogos, sobretudo porque insiste em se afirmar pelo lado pior”.

Ironia

Diz Settembrini : “Quando a ironia não é utilizada como um recurso claro e clássico da oratória, absolutamente inequívoca para qualquer espírito sadio, transforma-se em desmazelo, em obstáculo à civilização, cortejando sordidamente a inércia, o vício, a influência perniciosa.

Responde, em pensamento, Hans Castorp: “Mas, afinal, o que seria da ironia, pergunto eu, se se tornasse ‘absolutamente inequívoca’? Uma coisa árida e pedante, é o que ela seria!”

“Aqui temos a ingratidão dos jovens no seu processo de formação”, comenta -- com ironia? -- o narrador.

Música

“A música desperta o tempo e desperta-nos para a sua mais fina fruição”.

Arte

“A arte é ética na medida em que desperta”.

Tabaco

“Não percebo como há pessoas que não fumam -- privam-se, por assim dizer, do que há de melhor na vida, pelo menos de um dos maiores prazeres que existem! Já acordo a pensar na felicidade que será poder fumar ao longo do dia, tomo as refeições a pensar no prazer de fumar depois, diria mesmo, sabendo que há algum exagero nisto, que só tomo as refeições para poder fumar a seguir. Um dia sem tabaco seria, porém, o cúmulo do tédio para mim, seria um dia absolutamente insípido e sensabor. Se soubesse, de manhã, que não tinha tabaco para o dia, não teria coragem para me levantar, a sério, ficaria na cama. É que estás a ver: quando fumamos um bom charuto -- claro que tem de se puxar bem, é uma das principais condições --, sentimo-nos protegidos, não nos pode acontecer literalmente mal nenhum”.

Luciano Machado Tomaz e Thomas Mann
Enviado por Luciano Machado Tomaz em 25/09/2017
Reeditado em 25/09/2017
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