O número de sobreviventes do Holocausto está  diminuindo a cada ano que passa e, em breve eles já não estarão mais entre nós. Esta história, lamentavelmente trágica e horrorosa, será sempre lembrada pois será contada à todas as nossas futuras gerações. Cada qual contará a versão que leu. Cada qual contará a estória que ouviu. É vital que esta história não seja esquecida. Esta história que tem que ser um eco berrante na memória dos vivos para que nunca mais se repita. Nunca!

Arik Diamant é neto de Yosef Diamant, sobrevivente da Segunda Guerra Mundial e de Auschwitz, o campo da morte. Arik e seus dois primos desejavam perpetuar o número que Yosef carrega no seu braço esquerdo, 157621, numa tatuagem replica mas,  antes queriam a opinião do avô e também sua permissão. Acharam que o avô não aceitaria a 'homenagem' logo no início mas, também não imaginaram que Yosef ficaria tão chocado com a idéia. Depois de algum tempo refletindo o pedido dos netos, Yosef  perguntou a Arik se um dia ele contaria aos seus bisnetos o significado daquela tatuagem no seu braço esquerdo. Arik respondeu que fazia questão que seus filhos soubessem a história da tatuagem que era também a história do seu avô. Em 2008, Arik e seus dois primos perpetuaram na pele o número 157621 do avô Yosef Diamant. Arik Diamant fez um documentário chamado "NUMBERS" para homenagear o seu avô.

                    
 
Deixo aqui a minha homenagem à uma das mulheres que teve uma grande participação na minha formação como ser humano: Katharina. Mesmo ter passado por tanto sofrimento e dor, a Katharina nunca esmorreceu, nunca deixou de sorrir e acima de tudo, nunca deixou de viver. Ela sempre dizia pra não perder a cabeça, nem para eu me descabelar ou perder uma noite de sono porque tudo tinha solução, menos a morte. 

                    KATHARINA

Katharina começou a trabalhar comigo um ano depois que entrei naquela escola. Ela já era uma senhora de quase sessenta anos e eu a tratava com muito respeito. Aos poucos aquela formalidade toda foi dando lugar ao nosso coleguismo, amizade e carinho. As vezes eu a procurava para ouvir os seus conselhos e com toda sabedoria do mundo a Katharina deixava bem claro que não era para eu me descabelar, nem perder nenhuma noite de sono. Certa vez eu até indaguei, "Como você sabe Katharina? Como você pode ter tanta certeza? Como não me preocupar? É de se preocupar, sim!" E ela com toda calma do mundo respondeu numa voz firme e forte, "Se quiser, vai em frente mas você só vai se desgastar." Creio que ela teria dito 'SE ESTRESSAR' mas, em 1978, a palavra ainda não era conhecida por aqui. 

Uma tarde chuvosa, cheguei na escola encharcada e fui direto à sala dos professores. Encontrei a Katharina lá na sala tão encharcada quanto eu. Me preocupei com ela e a sua saúde por ela ter uma certa idade delicada  e com toda aquela chuva que pegou poderia ficar doente. Eu tinha um verdadeiro arsenal no meu armário: desodorante, Sempre Livre, lenços de papel, Band-Aid, Bufferin, saboneteira c/ sabonete, batom rosinha, escova de dentes e pasta, caixinha de Valda, uma caixinha de Língua de Gato, kit de costura ... e uma toalha! Nem cheguei a oferecer a toalha pois logo fui secando seus cabelos brancos. Ela apenas sorriu e agradeceu a gentileza. Eu comentei, "Depois da aula vou passar no Mappin pra comprar um mini-secador. Bom ter um no armário, né?" Ela respondeu que seria bom mesmo mas, o armário dela só cabia o essencial, os exercícios pra corrigir, livros e dicionário. Expliquei que cada professor tinha o armário conforme o número de turmas que possuía. Como ela lecionava alemão e o número de alunos era bem inferior ao dos alunos de inglês, o meu armário era king size, e o dela um terço do meu. Mesmo com todo aquele arsenal, ainda tinha espaço no meu armário e aí fiz aquela proposta decente: "Quer deixar algo no meu armário, Katharina? Tem espaço sobrando e eu não me importo em dividir com você." Ela olhou pra mim com aqueles olhos da cor azul bebê e disse que aceitaria. A partir daquele dia, Katharina e eu passamos a dividir não só aquele armário mas também momentos. Viramos 'lockermates'! E assim eu me referia à ela como: My Lockermate!
Nunca tivemos atrito nenhum, nem desconfianças como os outros professores que dividiam armários. Tinha cada arranca rabo! Alguém descaradamente 'pegando emprestado' caixa de giz ou apagador sem pedir. Outro 'pegando sem querer' o sanduíche que o colega trouxe de casa para beliscar no intervalo da tarde. Ou simplesmente aquela bagunça que fica quando revira tudo ao procurar alguma coisa e depois não arruma o armário direito. Pelo contrário, a gente fazia a faxina do armário toda quinta-feira quando nós duas tínhamos duas janelas à tarde. Era o nosso momento pra papear, por o nosso armário em ordem e tomar o cafezinho da melhor secretária do mundo, a Luíza, e fofocar ilimitadamente.
Numa destas tardes, num relance, vi algo no braço da Katharina: uma tatuagem! Meia assim brincando eu perguntei, "Ei Katharina! O que tem aí no braço? Uma tatuagem, é?!" Ela me fitou e respondeu que sim. E perguntou, "Você quer ver?" Respondi, "Você quer mostrar?" Peguntei por que na verdade não havia visto nada, apenas um borrão. Sei lá se ela queria se expor ou não. Vai saber como era aquela tatuagem e por que ela havia feito. Talvez não quisesse contar a estória ...
A Katharina sentou, tirou seu suéter e mostrou-me seu braço esquerdo. O que eu vi me deixou sem reação! Era um número. Sim! Aquele número com cinco ou seis digitos que tatuaram nos judeus nos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial!
A Katharina mostrou a tatuagem e falou que tinha aquela tatuagem desde muito criança. Respondi, "Sinto muito mesmo Katharina. Do fundo do meu coração, eu sinto muito pelo que você sofreu. Ninguém merecia aquilo, ninguém." Lágrimas rolaram pela minha face e a Katharina pediu que eu não chorasse por que já havia passado e que ela mesma não chorava mais. Lembrava sim mas, sempre procurava tirar coisas boas das lembranças que ela havia guardado. Do contrário, ela   evitava lembrar por não querer ter pesadelos, assim muitas das lembranças ela decidiu esquecer. Algumas ela foi apagando aos poucas enquanto outras ela nem chegou a registrar.
Ela falou que perdeu toda sua família, parentes, vizinhos ... mas ela havia sobrevivido ao holocausto. Sendo apenas uma criança, não tinha juízo e  se tivera um só pingo, teria feito algo para se matar na certa. Ela então falou, "Deus sabe o que faz. Criança é inocente. Se eu não fosse criança, na certa não teria aguentado mas, sobrevivi à tragédia e uma senhora me 'adotou'. Nem sei ao certo como vim parar no Brasil mas adorei ter vindo pr´um lugar sem aquela neve toda, aquele frio intenso que castiga por quatro longos meses sem fim." Enquanto ela falava, o seu braço ficou exposto e meus olhos registravam aquele número assombroso em minha mente.

         

Trabalhamos juntas por bem uns seis anos, Katharina e eu. Dividimos o armário e também nossos lanchinhos, segredinhos e estórias. Ela sempre perguntava sobre os namorados, meus alunos, livros, etc. Eu queria saber se ela estava bem e o que fazia quando não estava na escola. Ela contava sobre seu refúgio na Serra da Cantareira, seus alunos particulares, suas leituras, traduções científicas e suas plantas no imenso jardim na serra. Ela parecia tranquila e feliz com seu mundo. E assim o tempo passou e cada uma seguiu seu caminho. Não sabia por onde a Katarina andava. Não sabia nadinha sobre ela até que ...
Uma manhã de setembro, antes da primavera oficialmente começar, a minha Mãe pediu que eu fosse com ela ao Ceasa para comprarmos flores. Os dias para comprar flores e plantas aqui em São Paulo são terça e sexta-feira sendo que o dia começa cedo no Ceasa, na verdade começa de madrugada. Tem gente que aventura até lá só pra tomar a tal famosa sopa de cebola. Eu mesma nunca fui e nem iria. Nem pro aeroporto eu fui pra tomar o tal cafezinho mais gostoso de São Paulo. Imagine pra tomar uma sopa de cebola! Mas lá fomos nós às 5 da matina numa terça-feira para comprar flores pra D. Ana plantar na jardineira do quarto dela e também para enfeitar a entrada da casa. Para não incomodar o Sr. Francisco, o marido da Dona Ana, fomos ao Ceasa à la Angélica: de táxi. 
Porque terça-feira e não sexta? Por que na sexta sempre tem um bando de noivas neuróticas, estressadas e surtadas que chegam no Ceasa prontas pra brigarem pelos maços de rosas vermelhas ou flor de laranjeira e mimosinha que dificilmente são encontrados por volta das 6 da manhã. Pra evitar as cenas inusitadas das noivas histéricas acompanhadas pelas suas mães e madrinhas também histéricas, minha Mãe e eu resolvemos ir na terça-feira e curtir aquela lindíssima paisagem de flores, plantas e árvores que enchiam os nossos olhos com as mais diversas cores exuberantes, sem mencionar os perfumes que exalavam ao passar por cada um dos quiosques.Pra mim, o Ceasa tinha lá seu charme e ganhava de Holambra de goleada. 


Minha Mãe adorava uma florzinha chamada de "Maria Sem-Vergonha" e resolvemos levar uma caixa inteira com 15 mudas de várias cores. Comprei um vaso com girassóis. Aquele amarelo cor de sol me fazia lembrar Van Gogh e os verões da minha infância. Levamos também um maço enorme de flores do campo e uma sambambaia da Amazônia. Deixamos que compramos num box e fomos atrás de um carregador para levar a nossa compra até o ponto de táxi. Enquanto procurávamos um carregador ... Pasmem! Quem é aquela ali? Será que é ela mesmo? Eu dou pra sorrir e minha Mãe pergunta o que houve. Respondo rindo, "Nossa! É a Katharina! Veja Mãe! Aquela senhora ali ... tá vendo? É a Katharina. Ela trabalhou comigo no Instituto Roosevelt! Ela tá igualzinha quando a vi pela última vez! Igualzinha! Mãe, vou lá falar com ela!" Fui naquele box onde a Katarina contemplava mudas de ervas aromáticas. Me aproximei bem devagarinho, dei aquele tapinha no ombro dela e disse, "Ist alles gut, Katharina?" Ela virou, olhou pra mim e disse, "Ja! Alles ist gut!" O olhar dela ficou fixado em mim. Aí eu perguntei, "Você se lembra de mim, Katharina?" Ela olhou e disse que sim mas, infelizmente não conseguia lembrar o meu nome. Eu disse o meu nome, "Patricia. Se lembra?" Ela falou que o nome ela não lembrava mas, se lembrava muito bem de mim, do nosso armário e das nossas estórias. Fiquei feliz por ela ter se lembrado. Ela perguntou sobre a minha vida, se eu tinha outros filhos além do menino, onde eu estava trabalhando, etc. Respondi que continuava dando aula
de inglês como segundo idioma em uma escola e também em empresas como free-lancer, que eu tive mais dois filhos (duas meninas) e blá blá blá  ...
Também perguntei por onde andava e ela respondeu que se escondia na Serra da Cantareira, lá no aconchego da casinha dela no meio daquela mata toda. Ela falou que havia se aposentada mas, ainda dava aula, só que particular e em casa. Raramente saia de casa por causa do reumatismo. Quando ela amanhecia bem, sem dores, aproveitava para sair, passear e fazer compras. Lecionar alemão ainda era a sua paixão. Os alunos que tinha eram quatro. Ela nunca procurou por alunos, nem pediu aos colegas que mandassem alunos para ela. Os alunos vinham por conta por que precisavam aprender a falar alemão ou manter o idioma atualizada com aulas de conversação. Ela apenas escolhia o aluno conforme sua necessidade. Aí fiquei curiosa com aquela frase. "Como assim Katharina? Como você escolhe conforme a sua necessidade? Não entendi direito." Aí ela disse, "Eu tenho quatro alunos Patricia, apenas quatro e todos são homens e cada qual escolhido devido à sua profissão. Tenho um dentista. Velho precisa muito de dentista. Sempre bom ter um por perto, por que nunca se sabe quando vai precisar. Tenho também um clínico geral. Minha saúde anda até que bem mas, nunca se sabe também. Como tenho que usar estes óculos de fundo de garrafa procuro sempre ter um oftalmologista entre os meus alunos." Ela não falou sobre o quarto, então questionei, "E o quarto Katharina?" Confesso que estava curiosa. Ela olhou seriamente para mim e disse, "Um advogado, oras! Quem mais, Patricia?! Nesta altura da vida preciso de um para cuidar do
meu patrimônio e também do meu bem estar. Se eu ficar doente ou sofrer um acidente, tenho um advogado para administrar os meus bens e um amigo também para cuidar de mim. Você sabe que perdi a minha família toda e que nunca me casei. Sempre fui só. Se eu morrer, a casa vai pra uma instituição de caridade. Tudo resolvido há anos." 
Minha Mãe tinha se aproximado e havia escutado a Katharina falar da vida dela. Apresentei as duas e a Katharina me elogiou muito à minha Mãe dizendo o quanto eu havia sido gentil e carinhosa com ela quando trabalávamos no Instituto Roosevelt. A minha Mãe apenas sorriu.
A Katharina nos convidou para irmos à Serra da Cantareira fazer uma visita ao paraíso dela. Também a convidei para nos visitar lá no Alto de Pinheiros ao lhe entregar o meu cartão e ainda acrescentei o número do meu pager. Infelizmente, nunca deu tempo. Viver em São Paulo ou em qualquer grande metrópole é sinônimo de "rush"! Nunca se tem tempo pra nada.
Um senhor apareceu do nada e a Katharina nos disse que era o seu taxista a chamando para voltar para casa se não pegariam muito transito na volta. Me despedi dela com um grande abraço e um beijo carinhoso na face. Ela fez o mesmo e depois ela e minha Mãe se despediram com um abraço e os três beijinhos simbólicos para não casar. 
Enquanto a Katharina foi se afastando de nós, eu dava tchauzinho à ela ...
A minha Mãe quebrou o silêncio dizendo, "Que senhora ativa né? Cabeça boa ... deve ter uns oitenta anos e mesmo aposentada, ainda leciona e ainda cuida de uma casa naquele fim de mundo com um imenso jardim! Sabe, acho que você vai envelhecer bem também minha filha. Bom ver uma antiga colega assim tão de bem com a vida, né?" 
Nunca havia contado a história da Katharina à minha Mãe antes mas, naquela tarde, durante o nosso café, eu contei e a minha Mãe chorou assim como eu no dia em que a Katharina me contou.  
                              
 
Calada Eu
Enviado por Calada Eu em 15/05/2013
Código do texto: T4291908
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