Jô no Facebook
                        (Início: setembro de 2013)
                        
            Mariana Ianelli
               
Dos tremores, antes a púrpura,
Uma febre langorosa
Entre o lampião e os incêndios.
 
Livre de razões e mais inocente
Já desfiadas as culpas,...
As posses, as boas maneiras.
 
Miserável, mas de uma miséria
Tão pródiga, que em menos
Haja graça, e não carência.
 
A saúde dos humores, haja,
O escândalo da nudez displicente
Enquanto houver pouco e mel.
 
Jô - Há um poder estranho, mágico, dourado envolvendo sua arte. Inexplicável poder, logicamente - senão não seria poesia. Vou continuar lendo-a para confirmar ou não esta minha primeira impressão.

 
                                 ***
 
Não há grandes notícias.
 
Uma torre desapareceu,
O inverno expandiu-se
E a esperança ainda rói
O fundo de uma caixa...
Procurando saída.
 
Com esculpido esmero
Vai se acabando uma família.
 
Um gesto qualquer se repete
No ensaio de ser abolido,
Remediar, abafar, corrigir,
Nada lembra o que antes foi só
Generosidade de coisa viva.
 
Não convém
O alvoroço dos pássaros,
A revanche da galhardia.
É inútil desafiar o pó
E, contudo, desafia-se.
 
Jô - Outro poema contundente. Contém ele descrição, narração e uma certa gravidade épica, como que trazendo verdades homéricas necessárias a todos os viventes.

 
                                    ***
 
Já esquecemos o quanto foi destruído
Até que se abrisse essa paisagem –
Só o que vemos são essas formas escavadas pelo vento
 
A beleza de uma terra violada até a pureza –
Esse vazio das estepes onde nada cresce
Além de uma relva amarela que é pasto das ovelhas.
 
Jô - Este poema evoca um passado amargo, nada íntimo ou pessoal, mas algo telúrico, geográfico, real. Um passado que doi demais na poetisa, e ela arrisca lançá-lo nos caminhos alheios, procurando ascultar e medir o tamanho, a dimensão dessa dor nos outros seres.
A intenção - legítima, claro - é democratizar o vazio, o abismo da perda do verde, das límpidas águas correntes, da alegria vivaz da fauna e da flora. Verde, águas e alegria agora extintas.
A poetisa não aponta culpados nem acusa ninguém: somente lamenta os dias felizes porque verdes, líquidos e ledos que se foram para sempre. Evocação, desencanto, agonia evocadas sobre as ruínas de uma invisível Jericó.
 

                                   ***
 
Nenhum traço de delicadeza,
Só palavras ávidas
E o tempo,
A devoração do tempo.
 
Um jardim entregue...
Às chuvas e aos ventos.
 
O que para os cães
É febre de matança
E para um deus
Um dos seus inúmeros
Prazeres.
 
Caminhos de sangue
Onde reina o amor primeiro,
Morada de súbita
Ausência do medo.
 
Um despenhadeiro, o céu
E uma queda
Sem alívio de esquecimento.
 
Jô - A estrofe abaixo se encontra tumultuando o entendimento, a compreensão do poema, a meu ver. Quebra a boa lógica estilística, dificulta a apreensão e a apreciação perfeita da mensagem poética:
"O que para os cães
É febre de matança
E para um deus
Um dos seus inúmeros
Prazeres."
 
Minha modesta interpretação do poema: parece o Mundo girando, indiferente aos sentimentos. Arrostando tudo, trazendo silêncio, solidão e abandono onde há pouco sobejavam parcerias ditosas, felizes entre os seres e a Natureza.
A poetisa parece nos mostrar, com sua arte seca, quase antilírica, com seus versos econômicos, negativos, avaros quase, que as coisas reais sempre superam as boas intenções, os saltitantes sentimentos, as pessoas.
 

                               ***
 
Almádena, ensina-me a voltar.
 
Já varri todos os mortos,
Não há restos no chão.
Um quarto branco, uma cadeira,
O meu tempo é o presente,...
Não tenho do que me queixar.
 
Está feito, celebrado.
 
Janelas e portas abertas,
Na mesa a fruta matutina,
O lírio, o copo d’água.
Uma casa agradável,
Fosse isto uma casa.
 
Eu desapareci, Almádena.
 
Nada cumpre dizer
Tanto quanto dizem esses olhos.
Eu vivo como quem ama,
Eu consinto,
É só o que me cabe.
Dar e repartir, fazer que não sei,
No bronze ser o animal que dorme.
 
Há uma única lâmpada,
Há um violino
E a mão que o desata.
O vento de quando em quando,
O terço quadrante e a pedra rolada.
 
Há uma chave que nada guarda.
 
A terra esplandece,
Consorte de quem parte.
Agora amanhece.
 
Eu me perdi, Almádena.
 
Não há rumor nas coisas,
Elas são o que são,
Não desejam explicar-se.
A porcelana, a cambraia, a murta
E a falta de uma asa.
 
Aqui não existe o medo,
Eu planto e eu desbasto.
As paredes ardem,
A erva recende,
O sol vem do leste,
Tudo em perfeita ordem.
 
Está pronto, terminado.
 
Um rasgo, um passo em falso,
Uma sombra,
Agora é tarde.
As cartas não chegam
Nem são enviadas.
A mesa está limpa.
 
Eu me esqueci, Almádena.
 
As cores, como elas vibram,
As auroras.
O verde das baixas altitudes,
O vermelho, o azul,
Como entornam.
 
Eu desço e me arrebento,
Eu despenco, sou forte.
A natureza é forte.
Quatro pilares me suportam.
 
O céu sobre todas as torres,
Todas as luzes, exceto uma.
As nuvens se cruzam,
Juntam-se e se afastam.
Há uma brisa lá fora.
 
O corpo está servido,
O corpo está saciado.
Agora anoitece.
 
Protege-me, Almádena.
 
Jô – Quase chorei ante o último verso:
        "Protege-me, Almádena!"

Possíveis razões: cansaço, terceira leitura concentrada do poema (catarse), motivação estética (esse último verso semelha a uma súplica única)... Sei lá.
Há ainda muito a falar.
   


                                 ***
 
                “Uma sibila em Dom Pedrito”
                               (título)
Jô – A escritora se define: "Uma mulher que não tem medo de palavras. Que escreve, sem alfinetes nas asas, frases de borboletas vivas."
Essa frase da sua crônica deixa a gente prisioneiro do verbo, quero dizer, sem palavras possíveis e prontas para comentar nada.
Isso fora os deliciosos arcaísmos que invadem a crônica...

                             
Enviado por Jô do Recanto das Letras em 07/11/2013
Reeditado em 22/11/2013
Código do texto: T4560217
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