DORIVAL LEITÃO NO VELÓRIO

“O aposentado foi encontrado morto em sua casa... Depois de resistir ao assalto, ele levou dois tiros e não sobreviveu... O corpo foi encontrado na cozinha, próximo à pia. Jorge Fernando da Silva, 57 anos, deixou três filhos e a esposa... Ele trabalhou por mais de trinta anos como porteiro da empresa...”

_ Bom dia, a senhora é a viúva do falecido?

_ Não, é aquela aí ao lado do caixão. Você é repórter?

_ Sim, eu sou Dorival Leitão do “Manchetes Diárias dos Tiros no Rio”. Já leu minhas matérias?

_ Nunca li e nem pretendo num momento como agora. Não percebeu que estamos no meio de um velório?

_ Que pena. E quem está sendo velado mesmo?

_ Ora! O Seu Jorge!

_ Nossa, mas ele morreu? Ontem mesmo eu fui comprar um disco dele.

_ Seu Leitão, está de piada com a nossa cara?

_ Eu estou fazendo meu trabalho de reportagem. Qual o seu nome?

_ Alcides da Glória.

_ Alcides é o nome do meu irmão. Quando você resolveu virar mulher?

_ Eu sou mulher, seu ignorante!

_ É claro, vocês nunca se conformam em não ter nascido mulher.

_ Me dá licença, senhor. A minha filha tá me chamando.

_ Esse mundo tá perdido mesmo. Até filho essas pessoas já conseguem ter. No meu tempo de juventude isso era vergonha. Você não acha, senhor?

_ O quê?

_ Que esse mundo anda virado?

_ Pode ser.

_ E o morto, deixou muitas dívidas?

_ Será que o senhor pode respeitar o velório, por favor. Ele era meu amigo.

_ Que pena, eu não tive tempo de conhecê-lo pra me tornar amigo dele.

(O homem não falou nada e eu observei ao redor)

_ E aquele rapaz do lado da viúva? Será que era o amante dela? Coitado do velho!

_ O rapaz é o filho dela! O senhor será que poderia parar de falar um pouco?

_ Desculpe, esqueci de me apresentar. Sou o repórter Dorival Leitão do “Manchetes Diárias dos Tiros no Rio”. Trabalho há 50 anos na profissão. Ali vem uma moça. Olha só que belezinha. No meu tempo de jovem uma mulher que se vestia assim era chamada de meretriz. Você a conhece?

_ É minha filha! E agora me dá licença, seu...

_ Dorival Leitão. Sempre a caminho das notícias. Quer meu cartão pra não esquecer mais meu nome?

(O sujeito aborrecido saiu sem olhar para trás)

_ Me falaram que você é o filho mais novo? Como se sente depois da morte do pai?

(Nenhuma resposta)

_ Você tem boas lembranças dele?

(Nenhuma resposta)

_ Já sei, você não quer falar no assunto?

(Nenhuma resposta)

_ Que tal falarmos de futebol? O que achou do jogo do Vasco contra o Flamengo?

(Nenhuma resposta)

_ Tá bom, não gosta de futebol, né? E o que você acha da segurança aqui no Rio?

(Nenhuma resposta)

_ Pelo visto você não gosta, né? A cidade precisa melhorar tanta coisa. Essa semana mesmo eu fui assaltado dez vezes e perdi até o meu Fusca 62.

(Nenhuma resposta)

_ Quando quiser conversar é só falar, tá? Fique com meu cartão. Dorival Leitão está sempre por perto.

_ Senhor, desculpe interromper, mas o Nicola é surdo. Ele só conversa pela língua dos sinais.

_ Eu sabia que tinha alguma coisa de errado com ele. E seu nome, qual é?

_ Eu sou Raimunda, a empregada da casa.

_ Que bom. Pode me trazer uma xícara de café? Com pouco açúcar, por causa da idade. Tudo bem?

_ Eu trago, senhor.

_ Ora, você é a filha do casal?

_ Desculpe, mas não quero dar nenhuma entrevista, por favor.

_ Ora, mas eu só ia perguntar onde era o banheiro.

_ O seu café, senhor.

_ Obrigado. E seu celular?

_ Seu velho safado, pra que quer meu celular?

_ Calma, só ia dizer que ele caiu ali perto da porta. Essas pessoas aqui no Rio andam muito desconfiadas. Dia desses um policial perguntou o que eu estava fazendo na rua. Eu disse que estava andando e ele falou para eu ter mais respeito com as autoridades. Nem caminhar de madrugada a gente pode mais... Você deve ser o filho mais velho do morto?

_ Sim, sou eu, Paulo.

_ O que está sentindo com isso tudo?

_ Nada.

_ Deve ter tomado muitos calmantes, né?

_ Não.

_ Então já se conformou, não?

_ Não.

_ Então conte para os nossos leitores, o que sente nesse momento?

_ Nada. Meu pai não gostava de mim.

_ Você gostava dele?

_ Não.

_ Então não se preocupe. Vocês estão empatados. Agora tire uma foto aqui pro jornal. Senhora, pode tirar uma foto nossa pra manchete?

_ É aqui que aperta?

_ Não, o botão de cima. Cuidado pra câmera não balançar muito se não o filme vai sair do lugar.

_ Já acabou?

_ Sim, acho que eu saí bem na foto. Amanhã você compra o jornal pra ver como ficou na foto. Sua mãe está se levantando. Acho que agora eu consigo falar com ela.

_ Olá, senhora. Como vai?

_ Meu marido morreu. Trinta anos de casamento.

_ Deve ser muito triste se separar depois de tanto tempo, né?

_ Ele estava perto da pia.

_ O quê? O cadáver?

_ Não, o gato. O Wally, faz duas semanas que ele sumiu.

_ E o seu marido?

_ Ele tá aí nesse caixão. Tive que gastar uma fortuna no velório. Olha isso aí, a mesma cara de pateta dos últimos anos. Só servia pra pagar as contas, mas agora me deixou um monte de dívidas.

_ Como se sente diante disso tudo?

_ Felizmente já tá acabando. Já tô chorando o dia inteiro aqui do lado desse corpo. Já veio gente que eu nunca vi na vida falando que era irmão, primo, tio, amigo e todo tipo desse velho aí. Que casamento...

_ Como se sente agora?

_ Meu marido se foi. Oh, pobre de mim! Sozinha com três lindos filhos! Coitados deles! Amavam tanto o pai! Jorge Fernando da Silva, como eu amava esse homem...

_ O que acha da violência urbana no Rio?

_Tirou meu marido daqui. O que será de mim? Pronto. Já gravou minha tristeza?

_ Sim, senhora. Desculpe-me, esqueci de perguntar seu nome.

_ Dona Edith Silva, agora viúva e a seu inteiro dispor.

_ Pronta para a foto?

_ Raimunda!

_ Sim, madame?

_ Traga aqui imediatamente meu estojo de maquiagem. Um instante, seu repórter.

_ Isso mesmo senhora. Não é todo dia que se aparece na manchete de um jornal como esse em que eu trabalho.

_ Aqui, senhora.

_ Agora, podemos tirar a foto. Raimunda, fotografe-nos.

_ Está feito, senhora.

_ Mais uma foto aqui perto do meu Jorginho querido.

_ Amanhã não deixe de comprar o jornal, dona Edith. Muito obrigado pela entrevista. Seus convidados foram muito gentis comigo aqui hoje. Agora meus pêsames e pode voltar a chorar aí do lado do caixão.

_ Oh, Jorge Fernando da Silva, homem que tanto amei, pai de meus filhos, o que será dessa pobre mulher... Raimunda, traga mais lenços! Oh, como vou viver sem você? Querido...

_ Aqui, encerrando mais uma entrevista, o seu repórter experiente e sempre por perto, Dorival Leitão para o “Manchetes Diárias dos Tiros no Rio”.

Renan Maia
Enviado por Renan Maia em 20/10/2010
Reeditado em 16/05/2013
Código do texto: T2567494
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