LOLA

Saiu para trabalhar. Era uma bela manhã de sexta-feira. O sol brilhava intensamente. Resmungou alguma coisa contra o estúpido costume de advogados serem obrigados a trabalhar de terno e gravata num país tropical. Já suava em bicas, mal havia saído do banho. Meu próximo carro vai ter ar-condicionado, pensou, não quero nem saber se a patroa é alérgica. O próximo carro viria assim que saísse a decisão do juiz sobre aquela causa, sua primeira boa causa, depois de anos ralando para chegar lá. Anos de advogar para tias e vizinhos sem ganhar nada e prestando contas como se estivesse cobrando honorários de advogado figurão. Já sonhava com o Vectra zerinho, preto, completo de tudo, inclusive e principalmente, ar-condicionado. Daria o Celta básico, mais a comissão, e parcelaria o restante em suaves e prolongadas prestações, mas compraria o carro de seus sonhos. Com ar-condicionado.

Poucos metros fora da garagem, sentiu uma vontade inadiável de urinar. Pensou no trabalho que daria para abrir o portão e segurar os cachorros, que pulariam em cima dele, sujando suas roupas, e depois sairiam correndo em desabalada carreira, sem olhar para trás. Foi assim que eles haviam, dois anos atrás, perdido Lola, sua adorada cadelinha yorkshire. Quando ela fugiu, Letícia ficou dois meses sem falar com ele direito. Intimidades de casal então, nem pensar. Não, senhor, decididamente, não estava disposto a se atrasar, nem a correr o risco de perder mais um cachorro, e menos ainda de arrumar confusão com a esposa. Seguiu adiante, achou que daria para segurar até chegar ao escritório. Pouco à frente, percebeu que não, não daria. Passou em frente ao terreno baldio, aquele onde ele e seus amigos costumavam brincar de exploradores da selva, séculos atrás. Inexplicavelmente, o terreno não havia ainda sido vendido, nem se construíra nada ali, apesar da grande valorização ocorrida no bairro nos últimos anos. Continuava intocado, com suas árvores, seus cipós, o frondoso pé de jamelão e o de cajá e as outras árvores menos relevantes. As crianças de agora não brincavam mais ali; preferiam seus videogames e shopping centers. Era cedo, a rua estava deserta. Resolveu aliviar-se ali mesmo, escondido à sombra do pé de jamelão.

Entrou alguns metros no terreno, pisando com todo o cuidado para evitar os carrapichos. Cumprimentou Dona Glória, a viúva que morava três casas antes da sua, a qual lançou-lhe um olhar inquiridor. Esperou que a mulher sumisse a caminho da padaria. Olhou para um lado, nada. Para o outro lado, ninguém. É agora, pensou, excitado como um garoto, prestes a fazer alguma travessura.

Quando ia abrir o zíper, ouviu um barulho, um farfalhar na vegetação. Parou para escutar. Não conseguiu identificar quem, ou o quê, estava ali a lhe fazer companhia. Pode ser uma cobra, pensou assustado. Tinha pavor de cobras. Ficou imóvel; apenas os olhos moviam-se cautelosamente, perscrutando a miniatura de selva que o envolvia, seus instintos animais subitamente despertos; sentia-se um moderno homem das cavernas; sim, era um homem das cavernas de terno e gravata. Naquele momento, uma névoa improvável cobriu o chão. Ouviu um rosnar que o deixou apavorado. Será que um dos pitbulls do Zeca havia fugido? Ah, se fosse um dos cachorros do Zeca, aquele playboy sociopata iria se ver com ele! Começou a redigir mentalmente a petição inicial, imaginando a extensão dos danos, materiais e morais, que a fera insana e incontrolável e absolutamente assassina (havia aprendido na faculdade de direito a carregar nos adjetivos) iria provocar. Já contemplava sua segunda boa causa, e já imaginava que não teria que fazer tantas prestações para o carro novo. Se, claro, sobrevivesse ao ataque...

Conseguiu divisar um vulto indistinto entre os arbustos, a poucos metros dele. Era muito pequeno para ser um pitbull. Lá se vai a minha causa. Que raio de animal é esse? E o que diabos ele está fazendo aqui, no meio da selva de pedra, em um dos bairros mais nobres da cidade? Teria fugido de algum circo?

O rosnado foi se aproximando, ameaçador, até que o animal saiu de dentro de uma moita e ficou a cerca de três metros de distância, abaixado, encarando-o.

O advogado olhou para aquela fera, e sentiu algo estranho, uma sensação de déjà-vu. Olhou fixamente para o estranho bicho, começou a achá-lo familiar. Até que... mas... será possível? Não... não pode ser!

LOLA?!

Sim, Lola! A adorável e espevitada cadelinha yorkshire, o dengo de sua esposa! A dócil, meiga e carinhosa Lola, que estava desaparecida havia tanto tempo! Lola, com seus longos e sedosos pelos, pretos e cor-de-canela, que tomava banho toda semana no pet-shop, só comia ração de primeira e dormia na sua cama, encostada no seu travesseiro! Lola, campeã da raça em incontáveis torneios! Estava diferente, seus pelos haviam se transformado em grossas tranças, como uma cabeleira rastafári; estava mais forte, mais robusta; as garras haviam crescido. E, quando ela arreganhou os dentes, ficou surpreso com o tamanho das presas. Será que ela sempre tivera aqueles dentões?

Mas era ela, sem dúvida. Sentiu um arrepio de pavor quando Lola rosnou ameaçadora, abaixando-se ainda mais, preparando o bote.

Como ela havia sobrevivido esse tempo todo longe de casa? O que ela havia comido? Onde a pobrezinha havia dormido, ela que chorava todas as noites ao pé da cama, até ser acolhida por Letícia? Ela que, quando filhote, no inverno, pulava da cama e voltava correndo, ganindo pelo frio do piso que doía suas patinhas? Que provações e sofrimentos terá passado todo esse tempo, longe de casa? E como é que ela passou tanto tempo perdida, tão perto de casa? E porque ela continuava rosnando como uma fera sanguinária?

Percebeu atônito que Lola iria atacá-lo. Quando sentiu que o bote era iminente, chamou-a pelo nome, com a mesma voz melosa que sempre usara para falar com ela. Lola, Lolita, tutuquinha de papai, vem aqui, pretinha, vem!

A cadelinha outrora dócil e doméstica e agora selvagem recuou, ao ouvir aquele chamado. Teria reconhecido a voz de seu dono? Daquele que a levava para passear, que lhe dava sorvete de menta com chocolate (que ela adorava), que a ninava no colo enquanto estudava e redigia suas ações no escritório de casa? Sim. Ele olhou bem dentro de seus olhos, de seus olhinhos negros, e viu aquele mesmo olhar terno da sua cadelinha preferida, da dengosa Lola. Chamou novamente, vem, Lolota, vem para o colinho do papai, neném...

Lola não se moveu. Apenas ficou ali parada, olhando para ele, a cabecinha pendendo para o lado, exatamente como fazia anos atrás, quando ele o chamava e ela teimava em não obedecer. Ele deu um passo em sua direção. Iria pegá-la no colo, levá-la direto para o banho&tosa, a apanharia na hora do almoço e levá-la-ia de volta para casa, para o aconchego e a segurança do lar, para os braços de Letícia, que a encheria de beijos e afagos.

Mas, quando ele se moveu, Lola abaixou-se novamente, e voltou a rosnar, ainda mais ameaçadora. Os caninos estavam à mostra, e agora ele tinha certeza de que seus dentes estavam maiores. Bem maiores. Assustadoramente, perigosamente maiores. Ela agachou-se, retesando a musculatura hipertrofiada. O olhar de cadelinha de madame havia desaparecido, dando lugar aos olhos injetados de uma fera. O bote foi certeiro. As garras encravaram-se no peito do advogado, rasgando sua camisa de linho, enquanto as presas perfuraram sua jugular. Ele tombou indefeso.

Enquanto o sangue jorrava da artéria perfurada, ele, surpreso, ainda teve tempo de exclamar, entre engasgos:

- Lola, sua cachorrinha sapeca, eu sabia que você iria aprender a se virar sozinha!

Estas foram as últimas palavras que pronunciou, enquanto desaparecia garganta abaixo, devorado por Lola, a cadelinha Yorkshire mais dengosa de que se teve notícia.

paulo marreco
Enviado por paulo marreco em 21/11/2011
Reeditado em 22/12/2011
Código do texto: T3347994
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