A NOITE DO DIA EM QUE A NOITE VIROU DIA
 
Na nossa última festa de confraternização sem qualquer improviso fizemos a ancestral pose para a foto. Ficamos lado a lado, braços por sobre os ombros alheios, sorrisos largos, olhos brilhantes, barrigas murchas e caretas de vilão de revista de quadrinhos.

Tudo aprontado para a fotografia. Ainda que destemperada de luz natural e com parca iluminação artificial, evidenciava-se uma foto como outra qualquer. Captaria e preservaria a ocasião para sempre. Mas, algo fora do normal ocorreria no céu noturno do Recife por conta daquela foto. Um céu sem estrelas, mas ninguém deslembre que o céu da noite de minha cidade é belo e brilhante, mesmo nas noites desventuradas de estrelas. Quem duvidar que duvide.

Quando houve o disparo do flash revelou-se a fonte dessa história. Um súbito episódio que tomou conta do arrabalde de Caxangá - lá onde acaba a estrada - e se espalhou pelo mundo afora causando rebuliço e assustando um montão de gente.

Antes explico, para que o leitor entenda melhor, que o flash estava embutido em uma pequena máquina fotográfica, bem afeiçoada ao baixinho, proprietário daquela coisa e dono do estoque mais valioso de pentes do mundo.

O pequenino aparelho de registrar fotos deve ter sido produzido no tempo do ronca. Não conheço bem a origem dessa expressão e estou sem rede para consultar o Google, mas a uso quando me refiro a um passado longínquo. Nesse caso tempo do ronca significa que a máquina parece tão rara quanto antigos e preciosos são os pentes da coleção do baixinho.

Pateticamente aquela maquininha tem a aparência de ser digital, mas não se pode jurar com exatidão. Seu perfil é de uma máquina de tirar retrato da década de 1970, rechonchuda e pesada, mas isso é de somenos importância, mesmo já sendo o tempo dos smartphones e dos cartões de memória quando ninguém mais usa fotográfica nem rolo de filme.

O fato é que, o disparo do flash fez um clarão daqueles de cegar...  Clarão tão forte que até cego pode ver.

Havíamos saído do salão do clube onde rolava a referida festa para respirar um pouco de ar puro. Descemos a escadaria e atravessamos a relva orvalhada. Chegamos ao parque infantil. Driblamos escorregos e gangorras e nos sentamos nos balanços. Fumávamos charutos e jogávamos conversa fora. Nossas mentes se encontravam povoadas e instigadas pelas sombras de lembranças que o encontro com velhos amigos nos proporcionava. Por isso, tanta conversa mole e descontração. Debaixo do peso leve das gostosas recordações decidimos tirar uma fotografia para marcar o momento. Na verdade, aquele instante ficou registrado para sempre. Não na foto, mas em nossos corpos e pensamentos. A pancada do disparo nos atingiu em cheio.

Explico: é que a máquina do baixinho não faz Clic, faz... Pah!
 
Realmente, o dispositivo tinha um facho de luz que alucinou os retratados e também os circunstantes. Aquela claridade é incomensurável. Nada lhe pode ser comparável. Contudo, só para tentar explicar digo que é como facho de farol. Só que muito potente. Potente que só a gota serena e imensamente mais destruidor do que qualquer raio já caído sobre a terra. E pra piorar, o flash opera de forma estroboscópica. Tal qual uma metralhadora cuspindo pra todos os lados e causando uma chuva de balas, o flash produz um movimento periódico de luz em elevada velocidade e pra todos os lados atinge alvos com força descomunal.  Assim, a luz do flash debruçou-se sobre a noite transformando-a em dia. Além disso, fez calor e a luz nos atingiu como uma chinelada em nossa cara. Uma pancada de tamanco. A cacetada doeu e nos cegou momentaneamente.
  
“Foi o martelo de Thor!” exclamou um de nós antes de desmaiar.

Ao voltar a ver, enxerguei tudo embasado e de modo bizarro vi constelações naquela noite sem estrelas. A quentura era enorme. Um calor tremendo. A água da piscina ficara amarelada e efervescia como Targifor-C. Acima da minha cabeça - que agora me doía como em dias de enxaqueca - tive a visão hitchcockiana dos balanços vazios dançando e rodando no ar. Minhas certezas se eu ainda estava vivo despencaram no chão. O cenário se transformara em palco sorumbático, envolvido por assombroso suspense. O clarão foi efêmero e já arredara, aí a escuridão da noite voltou. Divisei luz emanada de um poste distante. Parecia descer do Cosmo. Um sol que vinha de um lado oculto, além-mundo. Foi essa luz que me fez recobrar aos poucos a consciência despedaçada.

Podíamos ouvir novamente as melodias eternas que vinham do animado baile, cantadas por um alucinado band leader. Estranhamente os sons rodeavam nossos ouvidos como emissão debaixo d’água. Ouvimos sirenes, tão comuns em discotecas. Porém, aquelas sirenes se aproximavam. Então, não eram de brincadeira. A coisa ficou séria. Atinei então que havíamos sido brutalmente atirados ao chão. A violência do choque provocado pelo flash foi como uma  barruada. Como se sabe, barruada é um substantivo regionalista nascido aqui no nordeste do Brasil. Etimologicamente derivado de abalroamento essa palavra é dita por nossa gente para exprimir uma tremenda batida. Noutras palavras, uma poderosa colisão.

Por falar nisso, a serviço da festa trabalhava ali perto em seu aparente pequeno negócio, mas que na realidade é uma grande empresa, o ambulante alcunhado de Barruada. Ele veio apressado ao nosso encontro. Foi o primeiro a nos prestar socorro, antes mesmo do corpo de bombeiros. Pela cara feia e pelo sangue em sua roupa, além de restos de carne pregados em seu corpo, pensei: “estamos lascados. Foi detonado algum artefato de forte teor explosivo”. Depois me lembrei que a cara do cara é aquela mesmo, parece uma barruada, o sangue era ketchup e as pelancas eram carne moída de gato, especialmente trituradas pra fazer o delicioso cachorro quente, vendido pela Barruada’s Hot-Dog, a mais famosa franquia da cidade.  Pra quem não sabe é mais ou menos como McDonald’s, Burger King ou Saturday’s.

Voltei-me para o lado e vi os corpos dos velhos amigos esparramados na areia fina e branca, onde brincam as crianças. A visão remeteu-me aos cadáveres amontoados de Auschwitz. Vi saindo do mato em disparada, cobras e lagartixas. Olhei para onde corre o rio, a cuja margem se estabeleceu aquele clube de golfe e foi aí que vi passar o búfalo. Ele flutuava ao sabor da correnteza e mantinha os olhos abertos bem arregalados apesar de morto, como se tivesse visto algo horrível antes da morte. Confesso que quase morri de medo.

Depois disso, percebi leves movimentos nos corpos caídos ao meu lado. Eles se arrastavam lentamente. Notei que não havia dilacerações, então afastei a hipótese de óbitos. Não houve morte humana, apesar do tenebroso impacto causado pelo flash da máquina do baixinho. Só o búfalo morre nessa história. Não, me desculpe leitor, havia me esquecido, também alguns vagalumes se suicidaram devido à forte depressão que os atingia. Primeiro porque a nova ortografia lhes tirou o hífen, que na verdade era o sinal que os fazia piscar e, depois, porque antes nunca viram tanta luz como aquela produzida pelo flash.

Por oportuno, afirmo ao leitor que os museus proíbem fotos com flash, diante da possibilidade de alguém no mundo ainda possuir, como de fato o baixinho possui, uma máquina com esse tipo de clarão tão poderoso, que pode danificar eternamente pinturas ou mesmo destruir esculturas.

Logo depois, erguendo-se do chão meio desequilibrado, o baixinho tirou o pente do bolso e o passou nos cabelos, na sua tradicional gesticulação. O tempo é curioso. Há anos eu não via aquela cena, o baixinho se penteando, mas me pareceu tê-la presenciado todos os dias da vida. Em seguida, com três ou quatro passadas do pente, instrumento máximo de sua elegância, ajeitou a barba e olhou por cima dos óculos para o minúsculo visor da câmera e com a maior naturalidade sugeriu que tirássemos outra foto, pois aquela ficara tremida.

Fez-se o silêncio mais silencioso que alguém já pode deixar de ouvir na vida.

O clarão se fora e a noite voltara a ser escura. Mesmo assim, pude ver os rostos transtornados de todos, antes de saírem correndo numa incrível velocidade. Todo mundo fugiu, desde os que estavam no parque infantil aos que dançavam no salão, até mesmo os da fila do Buffet. Acabou-se a festa, no melhor da festa. Comidas, mesas, cadeiras e até a decoração, tudo se reduziu a pedaços. Cerraram a janela do bar. O cozinheiro escafedeu-se sem lavar as panelas. Barruada saiu ligeiro, como o diabo foge da cruz, empurrando o carrinho de hot-dog, ainda com o fogão acesso e derramando o molho de tomate. O DJ desligou o som, arrancou os cabos e fios e arrastou-os em disparada pelo salão, deixando cair os CDs pelas ruas. Carregaram as fotos e as flores decorativas. O guloso encheu os bolsos de brigadeiro e fugiu pela porta dos fundos. O medroso cavaleiro procurou abrigo na cocheira, posicionando-se atrás da égua. Levou três coices do cavalo, que acordara ensandecido de ciúme ao ver o cara por trás de sua cavalinha. Homens que nunca souberam nadar nadaram mais rápidos que os recordistas. Muitas mulheres subiram avexadas as ladeiras de Aldeia. Outras ainda mais afobadas seguiram pra São Lourenço. Foram pedir proteção ao santo que na morte desafiou as exigências da tortura. O clube ficou destruído. Um pandemônio. Caos na madrugada. Big Bang no Recife. Tudo por causa daquele flash.

E o baixinho, ao lado dos balanços, sem entender nada que estava acontecendo sentiu um torturo percorrer-lhe a alma. Logo ele que sempre tinha ciência exata de como agir, pois a vida segundo ele é para ser simples e descomplicada. E, movido pela amizade e boa vontade de tirar o retrato dos amigos, disse:

- Eu desligo o flash, abestalhados!

Eu só conto isso porque foi assim que ocorreu a noite do dia em que a noite virou dia.
 
Post scriptum: Na manhã seguinte os jornais estamparam em suas manchetes a ocorrência de uma chuva de meteoros que fizera a noite do Recife virar dia.
MARCELO RUSSELL
Enviado por MARCELO RUSSELL em 23/10/2014
Reeditado em 03/11/2014
Código do texto: T5009167
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