O Português Angolano tem regras! (por Caetano de Sousa João Cambambe)

Não existe língua sem regra, bem como ninguém fala sem obedecer a um ideal linguístico compreendido pelos membros da comunidade linguística. O que muita gente tenta transparecer, é que simplesmente a variante que goza de prestígio é que possui "regras", e que as demais não, por isso é que os seus utentes falam sem regra.

Diogo (o Cão) quando chegou a Angola, terra de Higino (o Carneiro), não encontrou povos mudos (sem língua, no caso) à espera da famosa língua "emancipadora", digna de respeito, sinónimo de boa educação e cultura. Encontrou povos que não se comunicavam COM GESTOS. Cada reino tinha uma língua de contacto. E essas línguas, mesmo sem uma gramática explícita, estavam dotadas de regras, o que permitia que todos, em seus reinos, trocassem papéis comunicativos. E por não ter uma gramática externa, isso não implica dizer, por exemplo, que as pessoas falavam sem regra.

Estragaram a nossa cultura, as nossas línguas e a nossa educação bantu, alegando que éramos povos não "civilizados", e tantos outros nomes que só me causam "náuseas". A realidade linguística africana não é a mesma com a europeia. Nós temos as nossas línguas de raiz que, devido a "n" situações, são desvalorizadas, vistas como línguas de "analfabetos", "matumbos", etc. Essa discriminação e falta de interesse começa a partir da Constituição, quando o "cozinheiro" deu crédito à língua estrangeira, colocando as línguas locais como ‘’e outras línguas mais’’.

Aqui a Norma Europeia na fala não é muito frequente, e o executivo não sabe disso. Ainda assim, NENHUM ANGOLANO FALA À SUA MODA, COMO QUER, SEM SEGUIR REGRAS, etc., como nos dão a entender (enganosamente) as famosas ‘’entidades da língua’’; pois, se assim fosse, a gente não se compreenderia. Toda língua obedece a regras, e isso poucos sabem. Logo, torna-se um mito pensar que só a língua institucionalizada é que tem um padrão e que obedece a regras. O Português Angolano, como se pode imaginar, obedece também a regras, mas só que essas regras não são europeias, não são aquelas que estão nas gramáticas externas, daí a diferença, o que não constitui dizer que em Angola não se fala do bom português e que os Angolanos não sabem falar. Isso não passa de uma confusão que se faz entre Língua Portuguesa de Angola e Língua Portuguesa em Angola, Gramática Portuguesa e Língua Portuguesa, que são, caso analisarem bem, áreas assaz distintas.

Como se sabe, ninguém erra na sua língua materna, pois é natural. Erra-se naquilo que SE APRENDE artificialmente, por memorização, leitura, etc. Como a gramática tradicional, que não é língua, é artificial, então há sempre alguns desvios. Senão, todos falam correctamente a sua língua materna sem precisar de ir à escola ou ler qualquer gramática. É importante não confundir REGRAS GRAMATICAIS e/com LÍNGUA, pois a gramática não é nada menos do que uma simples parte que tenta descrever e representar os aspectos da língua. Aqui ninguém está a criar uma nova língua em Angola. Aliás, à semelhança de Moçambique, nós já temos um Português Angolano - distinto do Europeu - fruto da realidade educativa e sociocultural dos Angolanos, língua materna de muitos angolanos. Simplesmente defendemos o que no nosso país se fala. Temos uma Norma Padrão teórica, estrangeira, que se baseia na língua falada em solo português em vez de angolano e que considera certos "falares" ‘’mwangolês’’ como desvios.

É importante, porém, ressaltar que não existe uma única norma para fala. Assim sendo, jamais teremos um único modelo linguístico oral para todas as falas de todas as variedades, ‘’porque não existe uma única norma para a língua oral, mas numerosas, todas elas possíveis e competitivas entre si’’ (Da Silva, n.d., para. 3) e, efectivamente, ‘’todas as línguas vivas variam, seja em relação ao tempo, ao espaço, à classe social dos usuários ou ao contexto ou situação em que forem usadas. Só não muda, naturalmente, uma língua morta. Mas essa mudança não é para melhor nem para pior, é para o diferente, que não manifesta nem progresso nem decadência’’, foi o que Da Silva (n.d., para. 4) tentou esclarecer-nos.

E por se notar essa diferença, por se notar uma realização linguística distinta das demais, pessoas que desconhem essa realidade tendem a classificar cada variedade caracterizada por uma norma longe (entenda-se como diferente) da variante prestigiada como errado. E como ninguém erra na sua língua materna, não há razões por que dizer que o angolano fala um português sem regras, já que não existe língua sem regra.

Monteiro Lobato, em Emília no País da Gramática (1934, págs. 100-101), conscientiza-nos de que toda língua varia. E por variar, as questões sobre diferenças não podem ser vistas como erro:

‘’[...] Uma língua não pára nunca. Evolui sempre, isto é, muda sempre. Há certos gramáticos que querem fazer a língua parar num certo ponto, e acham que é erro dizermos de modo diferente do que diziam os clássicos. — Quem vem a ser clássicos? — perguntou a menina [Narizinho]. V — Os entendidos chamam clássicos aos escritores antigos, como o padre Antônio Vieira, Frei Luís de Sousa, o padre [...] Manuel Bernardes e outros. Para os carranças, quem não escreve como eles está errado. Mas isso é curteza de vistas. Esses homens foram bons escritores no seu tempo. Se aparecessem agora seriam os primeiros a mudar, ou a adotar a língua de hoje, para serem entendidos. A língua variou muito e sobretudo aqui na cidade nova. Inúmeras palavras que na cidade velha [Portugal] querem dizer uma coisa, aqui dizem outra. [...] Também no modo de pronunciar as palavras existem muitas variações. Aqui, todos dizem PEITO; lá, todos dizem PAITO, embora escrevam a palavra da mesma maneira. Aqui se diz TENHO e lá se diz TANHO. Aqui se diz VERÃO e lá se diz 'RÃO. — Também eles dizem por lá VATATA, VACALHAU, BACA, VESOURO — lembrou Pedrinho. — Sim, o povo de lá troca muito o v pelo B e vice-versa. — Nesse caso, aqui nesta cidade se fala mais direito do que na cidade velha — concluiu Narizinho.

— Por quê? Ambas têm o direito de falar como quiserem, e portanto ambas estão certas. O que sucede é que uma língua, sempre que muda de terra, começa a variar muito mais depressa do que se não tivesse mudado. Os costumes são outros, a natureza é outra — as necessidades de expressão tornam-se outras. Tudo junto força a língua que emigra a adaptar-se à sua nova pátria. A língua desta cidade está ficando um dialeto da língua velha. Com o correr dos séculos é bem capaz de ficar tão diferente da língua velha como esta ficou diferente do latim. Vocês vão ver.’’

CaetanoCambambe
Enviado por CaetanoCambambe em 31/12/2016
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