Quatro Causas da Salvação

INTRODUÇÃO

Aristóteles estabeleceu[1] quatro causas, quatro razões para que cada coisa exista como é. A primeira é a causa material, ou seja, a essência daquela coisa, o material de que aquilo é feito. A causa material de um banco de igreja é geralmente madeira, a causa material de uma aliança é o ouro. A segunda é a causa formal, que é a forma daquela coisa, como aquilo se apresenta para nós, como que os nossos sentidos percebem aquilo. A causa formal do banco ou do anel é o formato que eles foram feitos. A terceira é a causa operante, ou seja, aquilo que opera para que a coisa aconteça. A causa operante do banco de madeira é o marceneiro e a da aliança é o ourives. E a quarta é a causa final, que é a finalidade, o objetivo para o qual aquilo existe. A causa final de um banco é ser sentado, a causa final de uma aliança é ser um sinal de uma promessa feita.

Desse modo, quando perguntamos "por que este banco existe?", podemos responder dessas quatro formas: por causa da madeira, por causa do seu formato, por causa do marceneiro e para que possa ser sentado. Da mesma forma, se perguntarmos "por que essa aliança existe?", poderíamos dar aquelas quatro respostas. A pergunta que queremos responder neste livro é: por que nós somos salvos?

CAUSA MATERIAL

Segundo João Calvino, "a causa material, tanto da eterna eleição quanto do amor que agora é revelado, é Cristo"[2]. Jesus é a nossa salvação, da mesma forma que a aliança é ouro e o banco é madeira. Isto podemos basear no que ensina os versículos 3 a 5 de Efésios 1. Primeiro, o versículo 3 nos revela que Deus nos abençoa com toda a sorte de bençãos espirituais nas regiões celestiais em Cristo, ou seja, todas as graças relacionadas à salvação que o Senhor nos dá, Ele nos dá através da nossa união com Jesus Cristo. Ser salvo é ser unido a Jesus. O versículo 4 nos ensina que Deus nos escolheu nele, antes da fundação do mundo. E o versículo 5 nos ensina que Deus nos predestinou para Ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo.

Essa é uma das verdades mais importantes da Bíblia: Não são as nossas obras, nem mesmo a nossa fé, a razão da nossa salvação, mas a nossa união com Jesus. Muitos cristãos pensam na salvação como se Deus olhasse para a nossa fé, ou para nossas obras e, por causa delas, decidisse nos salvar. Mas é por causa de Cristo que nós somos abençoados, por causa Dele que somos escolhidos, por causa Dele que somos salvos. E essa escolha foi feita antes da fundação do mundo, de modo que não poderia haver em nós nada que nos tornasse dignos dela.

Precisamos levar em conta que, quando a Bíblia fala sobre algo sendo feito por Deus antes de alguma outra coisa, ela não quer dizer apenas que Deus determinou fazer aquilo cronologicamente antes daquela outra coisa existir, mas também independente dela. Podemos apresentar como prova disso Romanos 9.10-13. Nesse texto o apóstolo Paulo ensina que o fato de Deus ter dito antes dos gêmeos Esaú e Jacó nascerem que “o mais velho será servo do mais moço” significa que essa determinação aconteceu independente deles terem praticado o bem ou o mal, “para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama” (Rm 9.11). O mesmo raciocínio deve ser aplicado a Efésios 1.4. Quando Deus nos diz que fomos escolhidos “antes da fundação do mundo”, isso significa que nossa escolha não se deu por causa de qualquer coisa que Ele tenha visto em nós, mas porque Ele nos amou.

A doutrina de que a nossa santidade não é causa da nossa salvação fica evidente quando o texto diz que nós fomos escolhidos para "sermos santos e irrepreensíveis perante ele". Esta não é a causa final da nossa salvação, visto que até essa santidade tem um propósito posterior, sendo este apenas um objetivo secundário. Ainda assim, se um dos objetivos da nossa salvação foi nos tornar santos e irrepreensíveis, isso deixa claro que não é a nossa pureza e justiça o motivo pelo qual nós somos salvos, não são as nossas boas obras a causa da nossa salvação, mas aquelas são consequência desta.

Quando olha para nós, Ele não nos vê como pecadores, mas como santos e fieis, como diz o versículo 1. Isso porque Deus olha para a vida perfeita que Jesus viveu como sendo a nossa vida e a morte de Jesus como sendo a nossa morte. É assim que Deus nos julga, é assim que Ele se relaciona conosco, em Cristo. Segundo o versículo 7, em Cristo nós "temos a redenção, pelo seu sangue, a remissão dos pecados".

A palavra "redenção" (apolytrosin) significa comprar algo de volta. Mais especificamente, a maneira como a palavra é utilizada no grego enfatiza a distância existente entre a coisa resgatada e a pessoa de quem ela foi re-comprada. Nós pertencíamos ao pecado, mas Deus nos comprou de volta, usando o sangue de Jesus como moeda, para nos tomar de volta para si. A palavra "remissão" (aphesin) significa o perdão de uma dívida. Por causa dos nossos pecados nós nos tornamos escravos do pecado, com uma grande dívida que precisava ser paga. Deus determinou que aquele que peca deve sofrer a pena de morte, de modo que apenas com o pagamento de uma vida sem pecado que poderíamos ser liberados dessa punição. Foi isso que Ele fez por nós em Jesus Cristo.

Grande parte dos cristãos tem dificuldade com a ideia de que nós somos escolhidos para a salvação por causa de Jesus Cristo. Mas eles geralmente querem acrescentar alguma coisa, como boas obras, ou a nossa fé. Querem que Deus tenha algum motivo para nos escolher além da obra de Cristo, porque se foi só por causa de Jesus, seria injusto Deus nos escolher sem motivos e deixar outros de fora. Por isso eles acreditam que Paulo aqui está se referindo à eleição dos judeus, ou dos apóstolos. Mas isso não faz sentido porque todos aqueles que estão unidos a Cristo são abençoados com toda sorte de bençãos espirituais. Todos os crentes são predestinados para a adoração de filhos. Então todos os crentes são escolhidos antes da fundação do mundo em Jesus Cristo. As três coisas estão intimamente ligadas dentro do raciocínio do Apóstolo.

Outros ainda acreditam que Jesus é quem foi escolhido, não nós. Nós somos salvos quando nos ligamos a Cristo, e se não perseveramos em nos ligar a Jesus, perdemos a salvação. Mas o texto diz claramente que nós fomos escolhidos em Cristo para sermos santos e irrepreensíveis. Mais uma vez, se nós fomos escolhidos para sermos santos, não faz sentido dizer que a segurança da nossa salvação está na nossa santidade. Esses que acreditam nisso trocam "nos escolheu, nele, (...) para sermos santos" por "escolheu Jesus e nós só somos salvos se formos santos". Se a nossa santidade não é o motivo pelo qual Deus nos escolheu, não devemos supor que Ele vai revogar a Sua escolha se não permanecermos santos.

Uma das principais implicações práticas dessa doutrina é que nós devemos viver como pessoas que estão unidas a Jesus. Paulo usa esse argumento, por exemplo, quando condena a imoralidade sexual. Ele diz que nós que fomos salvos nos tornamos membros de Cristo, nos tornamos tão unidos a Ele como um braço está unido ao seu corpo. Então não poderíamos usar este corpo, que está unido a Cristo, para se unir a uma prostituta, porque assim nós estaremos profanando o corpo de Cristo. É como se nós pegássemos uma parte de Jesus e a usássemos para praticar imoralidade sexual. E é exatamente isso que nós fazemos quando usamos o nosso corpo para o pecado. Paulo usa esse mesmo argumento em II Corintios 6, quando proíbe o jugo desigual, dizendo: como pode haver harmonia entre Cristo e o Maligno? E é isso que uma pessoa faz quando entra em jugo desigual, está tomando um membro de Jesus e o ligando a um filho do Diabo.

CAUSA EFICIENTE

O quinto versículo de Efésios nos informa que Deus "nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, (...) segundo o beneplácito de sua vontade”. E o versículo 7 nos revela que Deus perdoou nossos pecados “segundo a riqueza da sua graça”. João Calvino nos ensina, a partir disso, que a causa eficiente da nossa salvação é "a grandeza da bondade divina, que deu Cristo para nós como nosso Redentor". É o beneplácito de Deus, ou seja, Sua boa-vontade, Sua escolha soberana, o motivo pelo qual nós somos salvos; como o ourives é a causa do anel existir e o marceneiro a causa do banco.

A palavra “predestinar” (proorisas) significa previamente determinar, marcar limites, estabelecer. Ela enfatiza o fato de que a escolha da nossa salvação não é por causa de nada em nós, nem nada nesse mundo, mas única e exclusivamente por causa de uma decisão do livre-arbítrio de Deus. Segundo Calvino, essa expressão “para ele” (eis auton) pode ser traduzida como “em si mesmo” (in himself), o que indicaria que Deus não procurou nenhuma razão fora de si mesmo para nos escolher; nenhuma das principais traduções para o português, porém, concordam com ele.

CAUSA FINAL

A partir do versículo 6, Paulo nos informa a respeito da causa final da nossa salvação, o propósito para o qual nós somos salvos. Anteriormente ele nos revela que é "para sermos santos e irrepreensíveis perante ele", mas mesmo isso existe apenas para nos conduzir para o propósito principal: "para louvor da glória de sua graça". Ou seja, uma terceira resposta para a pergunta "por que nós somos salvos?" pode ser: nós somos salvos para que Deus manifeste quem Ele é por nosso intermédio.

Nesse ponto podemos responder uma frequente objeção daqueles que se opõe à doutrina de que somos salvos por causa de Cristo somente e não por nada que há em nós: se a salvação só depende de Deus, por que Ele não salva todo mundo? O ponto é que Deus não nos salva por causa do nosso próprio bem estar, Deus nos salva para manifestar a Sua glória. Desse modo, até aqueles que se perdem cumprem o propósito de Deus, pois eles se tornam uma prova viva e eterna de que o Senhor é justo. Assim, sob essa perspectiva, a condenação dos homens não é uma tragédia, mas uma manifestação da gloriosa graça de Deus manifestada por aqueles que Ele decidiu salvar.

Uma dificuldade com isso que rapidamente se levanta é a respeito do fato de que nos parece injusto que Deus busque Sua própria glória. Então Deus é um sádico egocentrista que faz tudo para se mostrar e não se importa conosco? De modo algum. Veja, qual é o ser mais digno de honra que existe? Deus. É impossível existir um ser mais digno de glória do que Ele, pois se tal ser existisse, ele seria Deus. Sendo Deus o ser mais digno de honra, isso significa que é justo buscar a honra Dele. Como Deus é infinitamente justo, então é perfeitamente natural que Ele busque a Sua própria glória, e exija que nós a busquemos também.

Mas como se isso não bastasse, Deus não apenas é infinitamente justo ao fazer tudo para o louvor da Sua glória, como também é perfeitamente amoroso, porque não apenas a glória de Deus é o fim mais justo possível, como também é o fim mais agradável possível, já que nada é mais agradável e belo do que o próprio Deus. Desse modo, quando Deus faz todas as coisas para o louvor da Sua glória, nas palavras de John Piper, "Ele preserva para nós e nos oferece a única coisa no mundo inteiro que é capaz de nos satisfazer por completo"[3]. Por isso todas as coisas contribuem para o bem daqueles que amam a glória de Deus.

CAUSA FORMAL

Nos versículo 8-9 o apóstolo nos informa que Deus derramou abundantemente sobre nós a Sua graça "em toda a sabedoria e prudência, desvendando-nos o mistério da sua vontade". Ele está mostrando para nós qual é a causa formal da salvação. Assim como o anel tem uma forma de anel e um banco tem uma forma de banco, a salvação tem uma forma pelo qual ela se apresenta a nós, uma forma de ser percebida pelos nossos sentidos. Essa forma é explicada no versículo 13: "a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação".

É por meio da pregação da palavra que a graça de Deus é derramada sobre nós na salvação, o Evangelho é o instrumento pelo qual o mistério da vontade de Deus é revelado. O versículo 10 nos revela que mistério é esse: "de fazer convergir nele [em Cristo], na dispensação da plenitude dos tempos, todas as coisas, tanto as do céu como as da terra". Vamos ver mais adiante em Efésios que este mistério aqui referido é a Igreja.

Mas o mais importante aqui é que o mistério da glória de Cristo é revelado a nós individualmente por meio da Bíblia. Isso nos mostra como é importante a pregação e do estudo da Palavra. O Evangelho é a maior manifestação da sabedoria e prudência de Deus. Por isso não precisamos ficar procurando novas revelações, nem ficar criando outros métodos para atrair as pessoas. A proclamação da Palavra de Deus, no púlpito, em conversas, ou de qualquer outra forma que as pessoas possam ouvir, é o método de Deus. Tudo o que é necessário saber já ficou claro na Palavra. Tentar ir além da Palavra é tentar ir além de "toda a sabedoria e prudência" de Deus. Quase sempre, sem a Bíblia não há salvação.

[1] ARISTÓTELES. Física. Disponível em: <http://bibliotecadigital.tamaulipas.gob.mx/archivos/descargas/31000000125.PDF>

[2] CALVIN, John. Calvin Commentary on Ephesians. Disponível em: <http://biblehub.com/commentaries/calvin/ephesians/>

[3] PIPER, John. “Deus é por nós ou por Ele mesmo?”. Disponível em: <http://www.monergismo.com/textos/gloria_deus/deus_por_nos_ele_mesmo_piper.htm>