LABIRINTOS HUMANOS

Sonhei um sonho que me lembrou a imprudência de um olhar perdido na primeira manhã. Havia no ar uma fragrância única, embriagadora, que despertava todos os sentidos ainda cândidos dos encantamentos da nascente. Por toda a vista, e além dela, vislumbravam-se relvas verde-alvas que se estendiam a todas as estações, veredas e tempos convergentes naquele emergente devaneador, em que se aprimoravam ilusões cândidas.

O vento tocava uma suave sinfonia que era sentida por todas as almas transcendentes das coisas e dos seres, fazendo-os brilhar em meio ao baile de flores de todos os lugares, que se amalgamavam com arbustos de tamanhos distintos, em cujas sombras se deleitavam criaturas de todo orbe, em convivência pacificada, numa comunhão plena diante do olhar embrionário ainda inconspurcado e alheio a profanações desconhecidas e porvindouras que não pudessem pressagiar.

O céu se estendia na horizontal atravessando etéreas possibilidades, sem fechamento da abóbada em ponto algum. Entre os verdes das arvores, e as cores e os cheiros que habitavam abaixo e acima estendiam-se pequenas passarelas, pavimentadas pelas pétalas que se ofertavam como caminhos aos que não pudessem voar. A imensidade continha uma pureza inerente que ressoava por toda parte. E, assim, não havia açoites a faces, nem pedras de tropeço, nem dores incuráveis, nem solidões condenatórias, nem rancores residuais, e se irmanavam, coabitando-se, homens, animais e todo tipo de seres bizarros, de faces e origens desconhecidas.

...

Num caminhar suave, vi-me defronte ao imenso templo, cujo campanário se arqueava quase tocando o firmamento acima, e de onde emanava a energia purificada que irradiava sobre toda aparição e sobre todo prenúncio universal. Invadido de fulgor em chama ardente pela descoberta, deixei meus pés tocarem as escadas que davam ao interior do santuário. Imediatamente, estranhas ondas de mares e mundos ainda não inaugurados tocaram minhas pernas, sob nuvens longínquas que se concentravam acima. Sóis exóticos caíam dos zênites e desapareciam, tragados pelo sacrário, através das melodias que ressoavam dos sinos em seu cimo.

Abstraído de que mistérios desordenadores adviriam da profanação que estava preste a fazer, investi-me ao interior, subindo lentamente as escadas. Aproveitando-se da singularidade virgem a adentrar, acompanharam-me todos os demais seres, e coisas com suas fundamentalidades autênticas, cândidos das conseqüências do ato transgressor, que viria findar a calmaria e iniciar, a partir do aniquilamento do sublime, expansões multifacelares que figurariam por toda a eternidade.

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À entrada, visualizei um clarão ofuscante – para onde convergiam os sóis que desciam pelas janelas –, do qual desviei o olhar para alívio da cegueira momentânea que me provocava ainda mais confusão em bolas esbranquiçadas que apareciam e desapareciam por toda parte. Tivesse me atido ao aviso do resplandecer, teria regredido, mas o espírito imaculado já se deparava com a nova concepção, exterminando todo o espectro antes visto ao lado de fora. O ar interior não era mais translúcido, continha uma neblina suave que enchia todo o ambiente.

Os bancos vazios, em fileiras incontáveis indicavam que a vida era festejada por toda parte enquanto essências não se digladiassem por seus assentos, em busca do conforto ilusório que ansiavam conseguir com suas novas inaugurações.

Caminhando pelo corredor silencioso em direção ao grande altar, a paz se me enchia cada vez mais, como um último êxtase purificado, e inadvertidamente preste a se transformar em um reino de criações falseadas, onde todos os novos batismos de imagens se eternizassem nos amores, nas dores, nos medos, nos anseios, nas esperanças, e nas crenças que desagregariam a comunialidade pacifica do momento anterior e introduziriam, em querelas devassas, a individualidade de egos da nova gênese. E assim, seguindo impávido e inconseqüente é que cada vez mais alcançava infinitos distantes, ao mesmo tempo em que mais me postava diante da queda iminente em um abismo tão profundo que viria macular o próprio templo original.

Próximo ao ofertório, ainda olhando para os lados e para cima em direção à altura da tranquilidade, quis novamente contemplar o ponto exato de onde irradiava a mesma luz que a pouco houvera me ofuscado a visão. Foi nesse exato momento de vilipendio da virgindade intocada, que a perturbação se implantou definitivamente. A névoa então foi se dissipando, quando comecei a perceber contornos que antes se estendiam à horizontal infinita: As paredes e suas janelas, com magníficas pinturas em seus vitrais já não transudavam sóis, mas mantinha de fora uma nova concretude que eu iria deparar em breve.

Os bancos se ocupavam de todos os seres e coisas que se transformavam em semblantes humanos com rostos desfigurados por máscaras em que se apegavam e com seus corpos cobertos por estranhas vestes, roubados da nova natureza que se inaugurava na transgressão do sublime, pelo incomensurável poder criatório que descobriam e a que ansiavam com fome e sede insaciáveis. Não sabiam ainda que, vitimados por si mesmos, um pouco adiante, viriam a se tornar grandes pronunciadores de castiças palavras e a omitir, em tais máscaras e vestes, seus horrores exânimes e seus pecados esvaídos em seus novos paradigmas.

A um som estridente de um céu que se contorcia longe pela dor da anomalia que viria atingir a tudo, enigmaticamente, pela primeira vez em suas concepções temeram sem saber pelo quê, e começaram a orar a um deus que fabricaram com o novo e avassalador poder autoconstituído. Amparados em seu “deus”, ao qual se moldaram em imagem e semelhança sacramentaram o destino de tudo que houve ou vir a haver, segundo seus entendimentos e para seus aprazeres, condenando assim a verdadeira sublimidade que havia onde suas loucas razões não tinham adentrado no momento anterior.

Ainda tentei procurar, infertilmente, um olhar distante que me pudesse salvar do novo advento, já eivado e com um peso enorme sobre os ombros. Sem conseguir me mover, um aroma me lembrou sentidos de um tempo distante e esquecido, transportando-me incorporeamente daquele lugar.

Então me vi num casebre que havia numa pequena rua qualquer. Nos muros laminados andavam crianças a sorrirem para o perigo desconhecido. Nos terreiros outras brincavam despercebidas do veneno que fora implantado em seus cernes e que se propagava silenciosamente. Dentro havia comunhões estranhas a mim. Na cozinha com paredes de tijolos falantes, uma senhora manuseava panelas e pratos e fabricava, antes de qualquer degustação, magníficos sabores. Um pequeno corredor, de chão avermelhado e frio, dava a uma copa onde se posicionava uma mesa coxa, escorada por um pedaço de madeira, decepada da palmeira que abrigava, fora, os sonhos pueris. Adjacentemente se ligava à sala que dava a ruas de mundos torpes ainda não descobertos, habitados por seres com os mesmos semblantes vistos dentro do templo onde meu corpo se postava como estátua embalsamada. Ao chão da sala se estendia um pequeno tapete quadriculado, que continha muito mais cores que seu frio aspecto, onde se sentava um menino a construir ingenuamente veredas oníricas, que eram percorridas com encantamentos suspensos em ilusões castas. Imaculadamente se constituía no senhor da criação purificada naquele canto, onde imensidades se exalavam aos ares apartados do mundo exterior, que se lhe ofertava somente imagens e palavras confusas.

Havia algumas pessoas à copa. Uma senhora idosa falava carinhosamente a seu filho, em linguagem que eu não podia compreender. Na sala, um senhor sentou-se no pequeno sofá amarelo, rasgado em seus beirais. Silenciosamente, e com um semblante contemplativo, tivera antes o cuidado de não tocar o tapete onde eu brincava em sonhos. Um emergente e um condenado à beira do apagamento estavam lado a lado sem que se pronunciasse alguma palavra qualquer. Talvez os extremos da anomalia se tenham entendido em toda a cena dos tempos dele idos e dos a porvirem de mim. Sem palavras nascia uma confraternização. Um tempo depois, eu viria a entender que nenhuma mente genial ou criativa de nenhum andante poderia vir a ensinar mais que o velho ancião incipiente.

Fora, além terreiro de meu casebre, no mundo dos homens sábios, às vezes chovia uma chuva fina, fazendo silenciarem as manchas da exterioridade em uma única sinfonia, cujos acordes eram magnificamente tocados pelas gotas que caíam a toda composição, lavando-a, à fuga de todos os atores e escultores de verdades, que buscavam abrigos como que se caíssem lavas incandescentes que lhe queimassem a pele.

Absorto a suas evasões, ainda do pequeno tapete, feito um vasto mundo por minha pequena imaginação, comecei a ver vultos outros que se presenciavam, invisíveis aos demais. Fantasmas e seres de toda parte e de todas as formas apareciam apenas por se sentirem bem naquele pequeno esconderijo purificado, dentro do pequeno casebre, enquanto a chuva continuava a cair em uma doce e contínua melodia. Dentro, entre tantos seres que buscavam paz, sôfregos sorriam, aleijados pairavam no ar, cegos viam em sorrisos descompromissados. Surdos ouviam e se diziam pelo olhar. Todos se abreviavam para sentir o encanto de tão pequeno lugar onde o menino se assentava construindo inocentemente quimeras, como que se soubessem que breve todos os sonhos viriam a sucumbir quando o menino fosse de encontro à porta que o lançaria, sem retorno, à turbulência da qual se refugiaria em si mesmo, revelando em seu ego ainda não contemplado, e omitindo seus horrores em maldições proferidas à fria chuva.

A tênue ponte à lembrança pueril se desfez com o som cada vez maior, advindo das orações que se perpetuavam dentro do templo. Já não apenas contemplava, mas sentia toda convulsão. Súplicas eram conjecturadas ao deus criado como que se pudessem se aliviar dos anseios e das tormentas que se permitiram por violarem castidades com seus egos sencientes e com suas gêneses proliferadas. Amores sempiternos eram perjurados nos doces lábios que se ansiavam em beijos. Desejos libertinos eram liberados e divididos em quartos fechados de si mesmos ou com seus comparsas, exteriorizados em amizades alvas. Boas fés eram mostradas enquanto se detinham, nas mãos às costas, pedras assassinas de alguma sobriedade qualquer. Grandes arquitetos surgiam esboçando metafísicas de vastidões – invocadas para alicerçarem entendimentos sobre tudo que não pudesse ser compreendido – a fim de apaziguassem a fome da nova geração. Soberbos oradores, já totalmente desligados do momento que antecedera a aquisição de suas razões incipientes, vociferavam verdades sobre o novo reino, subscrevendo novas histórias, abrindo novos caminhos e plantando novas bases fundamentais em que se pudessem apoiar para a elucidação da paranóia.

Súbitas prisões nos vastos poderes de criadores sem que ninguém notasse que, ao mesmo tempo em que todos inaugurávamos, de nossos centros infames, existências e ilusões consagradas, assassinávamos tudo que outrora se havia antes do início da grande ponte em que nos postávamos.

E da criança em seu casebre singelo, apenas soçobrava uma pequena sombra, preste a sucumbir na anomalia que se instaurava em meu ego fausto. Atento e totalmente humanizado, ansiei participar em peleja e em encanto com as gêneses, inserindo minhas glórias ao campanário desordenado, de cujos seres contemplava composições e ideações imensuráveis. Impetuoso, e também amnésico como todos, senti o vigor de meu ser em semear imagens vastas. Ouvindo seus delírios translatos e dores inventadas, ofertei passarelas de ouro falso. Percebendo suas orações por salvação, dediquei-lhes paraísos desonestos. Vendo-lhes travestidos de belos e alvos disfarces, ofertei caminhos de pedras e de quedas a suas purezas perdidas.

Lendário, submeti-me a toda realidade inventada, como também a submeti a mim em oblações que continham néctares e odores extasiantes aos quais me misturava. E das alucinações contidas em cantos e em encantos tingidos com tantas cores, agonizei-me em lábios perjuros dos quais surgiam fontes extasiantes de dor e prazer. Excitado, percebi em mim uma convergência de todas as gêneses que se formavam desnorteadamente, com seus sublimes e nefastos enlevos, seus amores ofertados em juras de eternidades, suas fés delineadas em salvações idílicas, suas libertinagens devotadas às carnes escondidas, e suas vozes surdas que, em cernes, escondiam o próximo degrau obscuro.

Então senti, em grande arrebatamento, um líquido quente a escorrer por minhas pernas, em um orgasmo de tudo que se convergia em mim. Levei a mão trêmula à fonte do corrimento na tentativa de paralisar as epígrafes de todas as multidões multifacelares num simples existir, e o estrangulamento que me sufocava nos limites da razão recém-adquirida. Ao tocar-me, cores, cheiros e sons se intensificaram e me quedei entre tantos incensos que enterneciam meu ser com convulsões incontroladas, e se corriam em rios avermelhados pelo chão dentro do templo.

Consumido e quase esvaído de sentidos pela força com que surgiam todas as imagens às quais me amalgamava, inconscientemente ansiei a libertação na véspera morta. Caminhei sofregamente por entre o líquido de mim emanado que agora ia se tornando exangue e frio.

Palidamente cheguei à porta do templo por onde havia adentrado momentos ou eternidades antes. Um sol se fincava ao céu e aquecia todo espectro. Homens andavam travestidos como havia visto dentro do santuário. Carros se moviam a seus comandos em suas ruas e avenidas fabricadas. Flores e espinhos cresciam a seus cuidados no jardim da grande praça. Uma mulher passava abraçada e recolhida ao ombro de um homem. Uma placa fincada ao pé de uma rua conclamava os violadores para uma reunião: “Grande espetáculo, não percam: hoje às 20 horas”. Por entre as cortinas da luz do dia, amores e desejos eram divididos em cômodos fechados.

Um marimbondo subtraiu-me a atenção por um pouco de tempo, pousando em meu braço. Ao ser contemplando, antes de partir, injetou-me um veneno dolorido, anunciando-me as boas-vindas.

Elevei os olhos ao céu, exausto. Uma voz bradou insolente: - Alienado!
E tudo se consumou à existência consagrada no ergástulo de perpétuos seres que gritam gêneses, sem que pudessem sentir qualquer vestígio do dia anterior, e sem que houvesse chaves para a libertação da infinda e violadora capacidade emergida de seus egos.

 
Reedição
Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent)
Enviado por Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent) em 16/10/2017
Código do texto: T6144615
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