O CHICOTE VISÍVEL, INVISÍVEL SENTIDO

O CHICOTE VISÍVEL, INVISÍVEL SENTIDO

Marlos Guedes, 23.10.2017

Eu vi o chicote cortando o vento

E - como navalha fosse - a cortar a pele negra

Eu vi a alma negra sentindo os açoites

Vi, também, o juízo resistindo aos cortes das navalhas!

Vi o tempo que se escorregou lentamente

Vi o chicote se dissolvendo, algemas e correntes em ferros derretidos

Vi a ferrugem comendo o ferro que tanto maltratou

Vi a flor ressurgindo na pele negra!

Mas, ainda ouço os açoites, o som dos ferros se arrastando

Mas, ainda sinto o calor da masmorra e vejo sua pedra angular esconder a luz do sol

Sinto as mutações dos instrumentos de torturas

Como navalhas que se mostram em palavras, em gestos, em olhares, em pensamentos

Há vagar! Errantes nas mentes de muitas pessoas.

Pessoas que ainda trazem na alma o chicote de ventos, as ferrugens de pensamentos, os troncos fincados na mente!

Como dizem os poetas (*) :

"... todo camburão tem um pouco de navio negreiro..."

"...Não tenho medo do inferno / Pois faço da minha liberdade o paraíso / Minha deusa não me vende culpas / E acorda-me com um sorriso..."

" Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus!

Se é loucura... se é verdade

Tanto horror perante os céus?! ..."

"...Que fizeste dos teus santos / Dos teus santos pretinhos? Ao negro perguntei / Ele me respondeu: Meus pretinhos se acabaram, agora, Oxum, Yemanjá, Ogum, é São Jorge, São João e Nossa Senhora da Conceição. (Basta Negro! Basta de deformação!)"

"Ninguém ouviu um soluçar de dor no canto do Brasil....Negro entoou um canto de revolta pelos ares no Quilombo dos Palmares, onde se refugiou..."

Ah! Esses chacais que nunca dormem

Ah! Esses ferros retorcidos em forma de camburão

Ah! Esses navios fantasmas que insistem em navegar

Ah! Esses deuses das culpas e dos pecados a castigarem o prazer

Ah! Quantos cantos de liberdade ainda adormecidos nas dirtorções da vida!

Quanto ar ainda poluído por chicotes dissolvidos, ferros derretidos, troncos e suas fumaças queimados! Símbolos da dor, transformados, mutantes dos preconceitos!

Quanto de fumaça, das inquisições, ainda dança no ar?

(*) Na sequência: O Rappa, Odailta Alves, Castro Alves, Solano Trindade e Clara Nunes.