há desavença na mesa da janta

há desavença na mesa da janta,

a mãe fez feijão co’arroz

pra comer com desavença,

a mãe tempera a salada

que é o último prato que vai pra mesa,

vinagre tinto, óleo e sal,

— não agüento mais fazer comida,

diz baixinho para o prato de salada,

ninguém escuta um pio,

é necessário que se coma bem!.

há desavença na mesa da janta,

a mãe fez feijão co’arroz

pra comer com desavença,

aqui não se reza oração,

a não ser a mulher religiosa

que pede “abençoa a comida,

o dinheiro, a fartura, a família,

que às vezes dá raiva, que às vezes dá ódio,

não obstante devamos amar nossos filhos,

fazer a comida de quieta num canto?,

é necessário que se coma bem!”,

há desavença na mesa da janta,

a mãe fez feijão co’arroz

pra comer com desavença,

cheios de fome os meninos,

o prato é uma imensa existência,

sozinhos, o prato, a comida e os meninos,

um quer assistir o desenho, a tv desligou-se,

o outro se perde de púbere

pensando na menina dos olhos azuis,

que olhos os dela, que olhos,

e a comida se desenha imensa sobre a mesa,

é necessário que se coma bem!.

há desavença na mesa da janta,

a mãe fez feijão co’arroz

pra comer com desavença,

a menina tem nojo do pai

que espalha comida por todos os cantos,

não traz namorado pra casa,

vergonha de ter namorado?, queria ir embora é pra sempre,

o pai lhe pergunta quem era na porta,

mas não era ninguém,

ninguém que interesse, ninguém,

velho grosso e intrometido,

é necessário que se coma bem!.

há desavença na mesa da janta,

a mãe fez feijão co’arroz

pra comer com desavença,

o pedaço de carne maior (um absurdo!)

fica sempre da parte do pai,

o pai é uma montanha silenciosa

cheia dum segredo antigo,

ninguém sabe quem é o pai de verdade,

mas todos se dobram pra ele,

o dinheiro que abençoa a comida,

porque assim é que é,

é necessário que se coma bem!.

há desavença na mesa da janta,

a mãe fez feijão co’arroz

pra comer com desavença,

vão todos prum canto por fim,

o pai que trabalha, trabalha, sozinho, é sozinho,

dorme bem cedo pra vir o outro dia,

a mãe quer viver a novela,

a filha no quarto ouve música

e escreve um diário de sonhos,

e os meninos calados desaparecem na noite,

há medo e esperança,

é necessário que se coma bem!.

há desavença na mesa da janta,

a mãe fez feijão co’arroz

pra comer com desavença,

fez feijão co’arroz

pra comer com desavença.

(26/01/2005)

este e outros poemas do autor fazem parte da obra "Esquizolira e Desalinho" publicada neste link:

http://perse.doneit.com.br/paginas/DetalhesLivro.aspx?ItemID=669