Réquiem 

    Como os salmos dos Evangelhos celestiais,
     Os sonhos que eu amei hão de acabar,
     Quando o meu corpo, trêmulo, dos velhos
     Nos gelados outonos penetrar.
      
     O rosto encarquilhado e as mãos já frias,
     Engelhadas, convulsas, a tremer,
     Apenas viverei das nostalgias
     Que fazem para sempre envelhecer.
      
     Por meus olhos sem brilho e fatigados
     Como sombras de outrora, passarão
     As ilusões de uns olhos constelados
     Que da Vida dourarão-me a Ilusão.
      
     Mas tudo, enfim, as bocas perfumosas,
     O mar, o campo e tudo quanto amei,
     As auroras, o sol, pássaros, rosas,
     Tudo rirá do estado a que cheguei.
      
     Do brilho das estrelas cristalinas
     Virá um riso irônico de dor,
     E da minh’alma subirão neblinas,
     Incensos vagos, cânticos de amor.
      
     Por toda parte o amargo escárnio fundo,
     Sem já mais nada para mim florir,
     As risadas vandálicas do mundo
     Secos desdéns por toda a parte a rir.
      
     Que hão de ser vãos esforços da memória
     Para lembrar os tempos virginais,
     As rugas da matéria transitória
     Hão de 1á estar como a dizer: -- jamais!
      
     E hei de subir transfigurado e lento
     Altas montanhas cheias de visões,
     Onde gelaram, num luar, nevoento,
     Tantos e solitários corações.
       
     Recordarei as íntimas ternuras,
     De seres raros, porém mortos já,
     E de mim, do que fui, pelas torturas
     Deste viver pouco me lembrará.
      
     O mundo clamará sinistramente
     Daquele que a velhice alquebra e alui...
     Mas ah! por mais que clame toda a gente
     Nunca dirá o que de certo eu fui.
      
     E os dias frios e ermos da Existência
     Cairão num crepúsculo mortal,
     Na soluçante, mística plangência
     Dos órgãos de uma estranha catedral.
       
     Para me ungir no derradeiro e ansioso
     Olhar que a extrema comoção traduz,
     Sob o celeste pálio majestoso
     Hão de passar os Viáticos da luz. 

                                    (de “Faróis”)
 

Créditos:
www.biblio.com.br/

www.bibvirt.futuro.usp.br   

www.dominiopublico.gov.br


João da Cruz e Sousa (Brasil)
Enviado por Helena Carolina de Souza em 27/11/2011
Código do texto: T3359913