SOLO NA MADRUGADA
     

     Vem de longe, no silêncio lento, um inefável som de sax em doce melodia. Notas soltas, graves e agudas, prolongadas, solam a solidão noturna. Não há sequer um ser vivente na deserta rua. A cidade dorme, a vida descansa. Os pássaros se aninharam no arvoredo; já não cantam. Cães e gatos irmanados respiram a mesma brisa, dormem o mesmo sono. O vento varre as folhas nas calçadas. Um ranger de porta corta o silêncio e um raio de luar invade a penumbra de um beco, clareia o meu leito, vai ao cemitério avultar as tumbas, agita as flores. A noite esconde nódoas no pano da vida que não se vislumbra. A noite é muda, escura, calma, irônica. E nesta solidão minh’alma é mais harmônica.
     Chegam mais próximos de mim este som, esta brisa e uma lembrança invisível e tão presente, assim, aqui, agora, que me tira de mim, me leva embora...
     Retorno.
     Dou-me conta de que sou o que o espelho aponta. Nada mais que esta pálida pele sem rugas num rosto sem biografia. As rugas marcarão mais tarde em minha face a minha história. Este rosto, estes lábios, este olhar, este brilho, a vida me emprestou. Só minha alma é só minha, ad eternum. Estou em mim e ao mesmo tempo me procuro. A necessária solidão é o meu calmo refúgio. Lá fora a vida é barulho e todos do silêncio têm medo. O ruído das ruas, das máquinas, carros e buzinas, dos passos apressados, disfarçam o medo do silêncio. O silêncio é o templo do pensamento.
     Estou aqui com estas digressões, sem porquês. A noite dorme em mim e eu sonho insone. Non sense. Estou só, mas não solitário. Verlaine, Rimbaud, Baudelaire, Marllarmé, Whitman e Pessoa estão comigo. Poe, também. Mas sem O Corvo. Talvez porque uma coruja baixou de repente aqui na minha janela enquanto eu lia Augusto dos Anjos. Já não se ouve o som do sax. A madrugada morre, o sol amarela o dia. A vida frágil se levanta. Comigo.

Brasília,09.5.2009

LordHermilioWerther
Enviado por LordHermilioWerther em 09/05/2009
Reeditado em 21/05/2009
Código do texto: T1584317
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