Final de tarde

"Não vos preocupeis, pois, com o dia de amanhã: o dia de amanhã terá as suas preocupações próprias. A cada dia basta o seu cuidado."

A tarde já ia chegando a seu final e lentamente comecei a guardar tudo. O expediente terminara e mais uma noite se anunciava. Fazia tudo de forma morosa. Tinha a impressão que nem registrava o que minhas mãos mecanicamente efetuavam. Encaminhei-me ao elevador.

Havia uma longa fila da qual absolutamente não pretendia participar. É uma das minhas características. A ansiedade toma conta de tudo que penso e faço. Decidira descer pelas escadas. Satisfazia aquele momento, aquietando meu coração. O exercício sempre faz isto comigo. Por momentos concentro-me na atividade, como se meu pensamento cristalizasse.

Cheguei enfim à rua. A tarde caía de forma tranqüila, temperatura amena, céu de uma azul turquesa que me induzia a admirá-la. A natureza me convidava a entrar num clima de reflexão, comum a meu coração quando me encontro sozinha caminhando. E vou pensando... Nestas ocasiões volto-me para Deus.

Como pode alguém duvidar de um Criador que projetou cada espaço, cada vida e aquela linda tarde. Sim, o belo espetáculo arrancou-me de meu torpor. Não que me sentisse feliz. Não era isto exatamente. Sem saber o porquê, uma estranha angústia tomava conta de minha alma. Sentia saudades. De quem? Não sei, simplesmente sentia saudades. E isto gerava em mim um estranho incômodo. Como se estivesse vazia, como se faltasse alguma coisa.

Mas caminhava e a brisa tocava em meu rosto trazendo uma sensação agradável que contrastava com meu íntimo. Entrei no ônibus e sentei-me junto a uma das janelas, hábito que vinha de minha infância. Gostava de ir apreciando tudo, observando e sonhando.

Mas naquele dia tudo me parecia mais pesado. Quantas vezes em minha vida já fizera aquele trajeto? Não saberia precisar. Lembrei-me de tantas ocasiões! Mas hoje estava ali, e tinha a sensação de peso, como se necessitasse mudar alguma coisa. Avistei pelo caminho as pessoas que iam e vinham, muitas provavelmente cumprindo o mesmo ritual que hoje eu analisava.

Era estranho. Cheguei a casa quase que automaticamente. Perdi a consciência do restante do trajeto por estar envolta em meus pensamentos. Beijei minha filha que veio me abrir a porta. Sorri. Gostava muito daquele costume que tinham meus filhos. À minha chegada, geralmente vêm a meu encontro falando-me de seu dia.

O amor que sinto por eles alimenta meu espírito. É algo que me aquece o coração e me faz perceber a importância de cada pessoa neste mundo. Dei-me conta daquela saudade que dominava meu coração. Saudade de não sentir saudade. Saudade de viver o presente. Hoje, meu mundo é muito cheio do futuro. O futuro que não posso dominar. Mas que, não raro, faço a tentativa de administrar. Isto me faz sofrer, isto me traz a estranha sensação de impotência.

Lembro das palavras de Cristo “Não vos preocupeis, pois, com o dia de amanhã: o dia de amanhã terá as suas preocupações próprias. A cada dia basta o seu cuidado.” Gostaria de assimilar este ensinamento. Por breves momentos ainda consigo. Mas incorporar isto numa postura de vida é bem difícil.

Em meu quarto, a figura de Cristo, estampada em uma gravura, me põe em contato com este Deus tão amoroso, tão amigo. E o futuro mais uma vez traz preocupações. Peço perdão a Deus, sabendo antecipadamente que estava perdoada. Acho que isto é o que mais amo neste Deus. Saber-me amada, acolhida, resgatada.

Deito-me, fecho os olhos, e como um sonho, começo uma longa viagem. Sinto-me solta, livre, criança. Não vos preocupeis... Parece-me ouvir. Sinto um leve toque em meus cabelos, quase uma carícia, carinho divino. E eu ali... A sonhar, a planejar, a projetar, a realizar. Recuso-me a sair deste estado de torpor que me traz de volta a ingênua alegria de ser, apenas ser.

E as pessoas vão lentamente passando por mim, ora em silêncio, ora sorrindo, ora acusando, ora partilhando. Cada uma em consonância com vivência de relacionamentos. E mais uma vez aquela saudade. Quase me falando, quase tangível. Pessoas que amo, pessoas importantes, pessoas que me inspiram saudades.

Quase sem perceber, um sorriso aflora-me aos lábios. A velha alegria que me visita, liberta do futuro, liberta do passado, liberta de culpas, liberta de preocupações.

Enfim posso abrir os olhos. A noite já caíra e envolvera-nos a todos com seu mistério, com sua sombra. E eu, como num abraço, sinto-me protegida e forte, preparada para mais uma jornada que amanhã se iniciará.