FRAGMENTOS E CISMARES 02


               [O RISO E AS PERSONAS] 


           O riso é um narcótico acessível, barato e oportuno.
Por vezes quebra a brusca expressão de um incômodo, um medo natural que as pessoas geralmente  têm de se encontrarem, serenamente, com a parte mais sensível e escondida da identidade -  o avesso da personalidade.
O mundo quer rir! 
Do que ou de quem, pouco importa...
Rir! Gargalhar! Galhofar! Zombar!

          Precisaria rir também... Mas não consigo.
"Muito riso, pouco juízo", gargalhava Eco no vale da minha infância.
Começou lá e ainda me alcança aqui.
Desconheço-o, pois.
Nem o riso nervoso, o amarelo, o fingido, o destemperado, o sardônico.
Nenhum.
Apenas sorrio. Sorrir, genuinamente, eu sei.

           Tentei ser cuidadosa, amigável, diplomática (não, isso não tentei... exagero meu). 
 O que aconteceu foi que na hora H a bebedeira e o porre de tanta coisa descida garganta abaixo foram mais fortes que os clarões de lucidez que eu  perseguira até então. Eu sabia o quanto seria difícil sustentar meu tino por muito tempo.
Não é o mesmo que manter meus deveres.
Se prometo algo, se me proponho a alguma coisa, eu me asfixio e sacrifico para cumprir.
Não sei bem a que devo essafidelidade e palavra de honra, que não interessa a ninguém mas... Patética intenção, talvez?, de ser apontada, "olha lá aquela moça certinha..."
A chata. A tonta. "Dane-se aquela moça", decerto pensam. 

            Somos todos assim. Só alternamos os lados.
Nos dias pares, um. Nos ímpares, outro. Ou em cima do muro.
Perfilamo-nos nos lados, para a revista diária humana (e divina).
Estivéssemos no século XVI e juro que eu poderia ver o Gil Vicente surgir de preto, arrastando as três barcas, entre brumas, vindo ao nosso encontro.

          - "O que é que o Sr. pretendia de mim ?" - perguntaria ao dramaturgo ajudante de Deus no Juízo Final. 
"Fui empurrada para palcos durante toda a vida. O que pensam que eu sou, os pecados que a mim atribuem, não, não são meus... São dela, da atriz quando está no palco... a mulher de sorriso estático e distraído, interior massacrado, coração partido, alma rasgada, farrapos lançados nos cantos da sala vermelha, esperando que o tempo envelheça e uma brisa ou ventania leve para longe os fragmentos dos seus dias... Esta é ela." -  eu diria.
            Ou serei eu? 
            A face ou a máscara?

           Rir um pouco a cada dia é um santo remédio, dizia por aí uma tal bula não autorizada. Rir rejuvenesce. Esticam-se não sei quantos músculos!, li numa revista feminina. Mesmo quando o dia é desastroso como foi esse de hoje, mesmo quando a lucidez falha porque a irritação e a indignação são maiores.
            Precisaria rir também...
        
            Espero que estejam todos bem.
            E por que não estariam?
            A profecia do tal nunca morrer é ventura do viver.
           
Sorrio à ideia.






 
KATHLEEN LESSA
Enviado por KATHLEEN LESSA em 04/01/2007
Reeditado em 15/02/2015
Código do texto: T335934
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.